A adrenalina emotiva de ‘Good Time’
Certas histórias dão a volta ao nosso corpo. Coisas que tomávamos como garantidas ao ligar o projector, saem não sei bem por onde quando o mesmo se desliga. Enquanto esteve a correr, não nos deu tempo para pensar, e só agora, com os créditos a rolar por cima dos frames finais, somos capazes de organizar na nossa mente o que foi que nos manteve de olhos postos no ecrã durante a última hora e meia.
O que foi projectado, neste caso, foi Good Time, o mais recente filme dos irmãos John e Ben Safdie. A premissa do filme é relativamente simples: dois irmãos, Connie e Nick Nikas, interpretados, respectivamente, por Robert Pattinson e Ben Safdie (um dos dois irmãos realizadores), assaltam um banco e, no seguimento da fuga, Nick é apanhado pela polícia, enquanto Connie consegue escapar. A diferença, neste caso, é que Nick é afectado por debilidades mentais. Tentando elevá-lo enquanto ser humano e enquanto homem, diferenciá-lo daqueles com quem ele se compararia, Connie impede-o de frequentar as sessões de terapia a que o irmão era sujeito. A cena inicial é precisamente essa, a de Nick no terapeuta, uma cena fortíssima onde os planos fechados da câmara, que persistem ao longo de todo o filme, enquadram uma sessão de perguntas onde são evidentes as limitações do personagem. Limitações que acabam por lhe fazer a vida negra quando é lançado neste mundo de desgraça pelo irmão. Apanhado pela polícia, detido na prisão de Rikers Island, é agredido por outros prisioneiros e levado para o hospital.
Com uma performance esmagadora de Robert Pattinson, a partir daí é uma bola de neve de incidentes, envoltas numa palete néon que promove ainda mais o efeito de insónia e de adrenalina sentido ao longo de todo o filme. Connie a tentar arranjar forma de sair do buraco onde se meteu a si e ao irmão, primeiro tentando pagar a fiança deste, depois, ao aperceber-se que é incapaz de o fazer, tentando “raptá-lo” do hospital onde foi parar por ter sido brutalmente agredido dentro da prisão onde estava detido. Tentativas frustradas e insanas de alguém cuja vontade é dar a volta ao que correu mal, mas cujo discernimento não permite.
Em todas estas tentativas Connie procura a ajuda de outras personagens, que mesmo sendo uns pobres coitados, demonstram sempre afecto e vontade de o ajudar, qualquer que seja a sua situação. Quer pela sua aparência, quer pela cor da sua pele, o seu aspecto oferece aos outros segurança em relação às suas acções, que o deixam fora de quaisquer suspeitas. Sobre estes acabam depois por incidir as suspeitas que inicialmente nunca recaem sobre Connie, desde Ray (Buddy Duress), um rapaz recém-libertado da prisão que mais à frente no filme se torna companheiro de ocasião de Connie, (e que conta numa óptima cena a forma como foi passado o seu primeiro dia enquanto homem livre, que começa com o autocarro prisional a deixá-lo em frente a uma loja de bebidas), até a uma senhora negra idosa ou à sua neta (Taliah Webster), a primeira a ajudá-lo pelo seu bom fundo, a segunda por ficar seduzida por ele. Nenhum deles se encontra em melhor situação que Connie, mas todos se dispõem. Ele não consegue, no entanto, não deixar de se achar superior a eles. Coloca-se num pedestal moral superior por estar a tentar ajudar o irmão, mas no fundo a sua ética é ainda menor que a das restantes personagens, que acabam enganadas por ele.
Connie quer que o irmão seja uma pessoa como as outras, mas a verdade é que não é. Nick acaba por não ser mais que um peão nas mãos do irmão. Até que ponto a necessidade de Connie de tirar o irmão desse ambiente não é mais que um véu que o próprio usa para esconder as debilidades do irmão, para não as aceitar e não fazer face às mesmas? Connie estará de facto a ajudar o irmão ou está simplesmente a tentar convencer-se a si mesmo que o está a fazer, não passando tudo isso de um estado de negação? As respostas não são dadas, mas a violência destas vidas é exposta para que possamos sobre elas reflectir.
Em Cannes, da competição trouxe a banda-sonora o prémio. A cargo do músico e produtor electrónico Oneohtrix Point Never, envolve o filme de forma perfeita, aumentando de intensidade freneticamente numas vezes, noutras, como no caso da música que encerra o filme, ao qual Iggy Pop empresta a voz, trazendo toda a melancolia e tristeza do filme ao de cima. No fim, ao acenderem-se as luzes da sala de cinema, é difícil conter o coração. Tenta sair pelo peito e pelos olhos.