Apropriação cultural
À boleia da recente acusação de plágio e apropriação cultural que Carolina Herrera foi sujeita, por ter usado padrões mexicanos na sua nova coleção, aproveito para refletir se não estaremos perante um movimento extremista que nos poderá levar a uma nova forma de censura.
A definição de apropriação cultural não é estanque, mas é aceite, de uma forma simplificada, como a adoção de elementos de uma cultura por membros de outra cultura, mas sem respeito pela sua origem. A definição estende-se não só à cultura em si, mas à luta entre classes dominantes e minoritárias. É neste ponto que nos deparamos com o primeiro problema, que é a definição de cultura. Nos diversos casos de acusação de apropriação cultural, acredito que o conceito de cultura defendido esteja próximo do formulado pelo antropólogo Clyde Kluckhohn que diz que a cultura é “(…) the total life way of a people, the social legacy individuals acquire from their group.”. Ou seja, cultura enquanto herança social, passada pelas gerações anteriores, algo abstrato, mas com um forte sentido de pertença e união dentro das diversas comunidades.
Nesse sentido, ao fazermos uma pesquisa rápida sobre o tema, surgem artigos em letras garrafais sobre celebridades que usaram elementos culturais de forma inadequada ou que não tinham sequer uma ligação umbilical com os mesmos. Alguns exemplos incluem Kim Kardashian a usar braids (penteado africano de tranças), Selena Gomez a cantar com roupas indianas, a cantora israelita Toy usar um kimono na sua atuação da Eurovisão ou uma modelo da Vitoria Secret usar um chapéu nativo americano numa passerelle. Alega-se que qualquer dos exemplos referidos é um desrespeito pela cultura de origem porque o uso destes elementos foi puramente estético, sem preocupação com a herança social e as dificuldades que estas comunidades atravessaram. Dentro da definição acima descrita, todas estas acusações fazem sentido, sobretudo pelo uso aparentemente superficial. No entanto, esta visão de cultura parece-me desajustada na era da globalização onde, de uma forma geral, todos vivemos e que considero benéfica.
No caso das diferentes Artes, como a moda, que desde os seus primórdios, vive de uma troca social e cultural constante, parece-me contraditório apoiarmo-nos numa visão tão redutora e castradora de cultura. No caso recente da venezuelana Carolina Herrera, o governo mexicano confunde plágio com apropriação cultural, o que é uma ideia perigosa de se difundir. O plágio é pura e simplesmente copiar o trabalho de outra pessoa e, se de facto a estilista o fez, há que pagar por isso. No entanto, se houve uma inspiração artística numa certa cultura, não vejo onde é que poderá existir desrespeito pela mesma. Muitos movimentos artísticos disruptivos surgiram precisamente através desta curiosidade por outras culturas. Pergunto-me se o governo mexicano faria o mesmo se fosse uma marca de roupa desconhecida.
Porque parece-me que existe um certo ressentimento, um receio de perda de identidade por parte das minorias, sejam elas pequenas comunidades ou países, porque se são oprimidas, não é justo a classe dominante usar os seus símbolos. Na situação de Carolina Herrera, o governo mexicano refere que tem muitos documentos que provam esta apropriação cultural. Outras comunidades fazem o mesmo, apoiando-se na ideia de herança social como se fosse um certificado de autenticação que lhes confere direitos autorais. No entanto, a origem de um determinado símbolo, obra ou cultura não tem a sua cronologia determinada e cimentada em algo como o “dia 1” em que foi inventada: mesmo esse símbolo surgiu de outras culturas mais primitivas. Portanto essa base de argumentação cai por terra. E se vamos ao ponto de querer oprimir ou proibir uma pessoa de usar um certo estilo de corte de cabelo como o exemplo que referi acima, ou da rastas que a ministra sueca da Cultura e Democracia Amanda Lind usa,
Arriscamo-nos a seguir o exemplo da Coreia do Norte. E que dizem estas vozes, por exemplo da comunidade afro-americana, se falarmos da massificação do género hip-hop e R&B na cultura mainstream? Se a cultura tem de ser fechada e exclusiva, se é preciso autorização, como é que estes géneros prosperavam e evoluíam? A apropriação cultural não pode ser unilateral para quem se sente oprimido. Finalmente, com esta questão, surge ainda uma outra, que á legitimidade de quem cria.
No início de 2019, Amélie Wen Zhao, uma americana com origens asiáticas, estava para lançar uma trilogia de fantasia juvenil chamada Blood Heir. Quando foram lançadas as primeiras páginas de preview, foi acusada (baseada numa interpretação de um leitor) de estar a fazer uma analogia da escravatura norte-americana e, como não era negra, não podia escrever sobre o assunto. Fazer este tipo de acusações é ir contra a criatividade per si. É uma forma agressiva de censura, é compartimentar e limitar os artistas e o seu processo criativo. É uma distopia onde não gostava nada de viver. Apoiemo-nos antes na definição de cultura de Clifford Geertz que diz “the culture is public because meaning is”. Ou seja, e segundo o mesmo, a cultura é a própria condição de existência dos seres humanos, produto das ações através de um processo contínuo. E para quem gosta de citações, deixo uma última de Mahatman Gandhi: “No culture can live, if it attempts to be exclusive.”
Quer-se uma cultura aberta, de partilha entre artistas, cidadãos, consumidores: isso sim, é apropriado.
Crónica de Miguel Peres
Miguel Peres é um rapaz baixinho e criativo com várias vidas: trabalha em comunicação, é copywriter freelancer e argumentista de banda desenhada. É um apaixonado pela sua mulher, por cinema, comida e BD. Tem 2 livros publicados, diversas curtas publicadas em antologias internacionais, um selo editorial chamado Bicho.