A arte: o que é de todos e que merece ser para todos
A arte é um conceito muito abstrato e amplo, que pode abranger uma imensidão de coisas. Pode ser uma música inspirada, um filme fantástico, uma escultura ou uma pintura arrojada e ligada à conduta humana; mas também pode ser um golaço no futebol, pode ser uma fórmula matemática, pode ser uma ideia sobre algo, mais ou menos metafórica (aquelas a partir das quais a poesia nasce). Pode até ser uma paisagem, que não se transforma nem é fazível, mas que, simplesmente, é. A arte é algo que podemos associar a tanta coisa que damos por nós a, diariamente, conviver com a arte. Em termos concretos, porém, a arte é feita da música, do cinema, da literatura, do teatro, da arquitetura e, em especial, da escultura, da pintura e, recentemente, da fotografia, para além de todas as suas variantes que, entretanto, se foram formando.
No entanto, não é assim tão consensual com todas as fontes de criação artística. Criam-se, nos meios em que se arrogam de todo o engenho para corresponder aos pergaminhos de uma inovação inspirada na história, os “artistas”. São artistas entre aspas porque fazem jus ao duplo significado da palavra. Vão para lá da criação da arte por si mesma. Põem o seu engenho em prática com outros fins, com outras configurações. A arte torna-se algo cada vez mais distanciado porque o “artista” assim o quer e assim o desenha. É uma dupla arte, que nem sempre é assim tão admirável e apreciável quanto isso.
Designam-se, muitas delas, as belas artes, aquelas em que é o desenho e os demais instrumentos de gravação e de criação se estendem e se distendem no objetivo de traduzir o belo ou mesmo de gravar as emoções de quem se apelida artista. O próprio ensino acaba por fragmentar e por tornar o seu discurso hermético, quase incompreensível para o comum mortal que gosta de apreciar a arte pelo que ela é e pelo que lhe suscita, mais do que toda a teoria subjacente. As noções técnicas são usadas como uma forma de distanciar e criar esse fosso entre quem gosta de apreciar a arte por ela mesma, de forma despreocupada e até um pouco leviana e o suposto “perito”, aquele que domina todo o discurso do estudo e da criação artística.
São discursos díspares e que entram em choque. E tudo começa, como em tudo, na formação, na criação do artista, do protagonista da obra de arte. Quando o registo se torna impercetível para aqueles que se interessam, é difícil para eles compreenderem e, por conseguinte, difícil alcançarem e chegarem ao contacto na primeira pessoa com a arte. A arte, aqui, neste contexto, leia-se como a nomeada obra de arte e não aquilo que se possa considerar, no senso comum ou no imaginário, como arte. Vê-se o desenho e percecionam-se coisas distintas, que muitas vezes traduzem a forma de estar e de pensar de muitos daqueles que as admiram. No entanto, e por aquela obra de arte não ter a oportunidade de criar um contacto direto, personalizado e familiar com o próximo, a arte não se cumpre. Fixa-se e cinge-se no seu meio restrito, no seu nicho, na sua esfera de atuação. Será que a finalidade da obra de arte é outra senão o seu pedestal, senão a sua compreensão somente pelos entendidos, pelos ditos eruditos?
Na sua substância, no seu âmago, a arte é a mais bela expressão da humanidade. É feita pelo homem, na procura de um belo que, nem sempre, é belo. É a sua perceção de beleza ou até de feiura, o seu oposto, mas é uma expressão daquilo que é o mais humano, o mais universal. É um vínculo, é uma ligação, é um elo que procura unir mais do que separar, que procura fomentar o diálogo e a interação mais do que se restringir ao seu meio. Uma galeria de arte é pouco procurada por não haver essa linguagem, por não haver essa relação mais aconchegante e familiar que podia haver. O potencial está todo lá, mas é o comum apreciador que tem de fazer um esforço – e que esforço – de se inteirar daquilo que os “artistas” assumem como o seu fluxo criativo e de que forma aproveitaram as suas inspirações para dar lugar ao seu trabalho.
A cultura é popular e pouco se pode designar como erudita. É complicado ir a uma ópera ou escutar uma composição musical da música chamada erudita. No entanto, não se trata somente das pessoas estarem “pouco preparadas” para “acompanhar” aquilo que é transmitido. Trata-se, fundamentalmente, de um distanciamento que se foi criando, com o tempo e com o espaço, entre a sociedade e a arte. A arte, inicialmente tão sustentada no folclore, nas tradições, nas lendas e no imaginário do comum, vê-se hoje enredada numa teia com tiques elitistas. São tiques que, no entanto, são tudo menos desconfortáveis para quem cria essa arte. Forma-se um pedestal, pedestal esse de uma especialização sem a qual já é difícil sobreviver. Sente-se um ego mais aguçado que o normal, dado um silencioso, mas pernicioso sentimento de superioridade. É bom ter um meio exclusivo, no qual se pode achar melhor ou com mais valia do que o homenzinho que gosta da sua futebolada ou do que a mulherzinha que vê a sua novela. O desdém não é mudo e ouve-se bem, especialmente quando a toada alternativa é mais do que uma identificação à personalidade, mas também uma forma de conseguir ser mais e melhor, não por si, mas em si em relação aos outros.
O que é um leigo pode dizer sobre o que é a arte? O que é que um leigo pode assumir sobre a arte? Nada, porque ele não tem a formação, o instinto, a capacidade e a visão de perceber o que é a arte, do porquê de ser arte e do papel da arte. Sabe lá o leigo. Mesmo aquele leigo que, no empenho pessoal, procura perceber mais e promover a valia do que se faz pela cultura e pela arte é, desde logo, recriminado e renegado. O mundo da cultura e da arte é complexo e, mais do que isso, mesquinho. Lidam-se com feitios e com egos aguçados, que cresceram em luas circunscritas aos seus jeitos e que as encapsularam perante o que é comum e normal. A sua visão é etérea e iluminada, por mais escura e sinistra que a obra seja. A arte vê-se cada vez mais entregue a (não tão) belas artes, as mesmas que reivindicam a atenção e a confiança de quem as olha, de quem as admira e de quem investe nelas, muito mais do que o seu dinheiro, a sua sintonia e a empatia com o que é exprimido.
Deixo um repto: nós somos queremos ajudar quem faz – e, na maior parte dos casos, tão bem faz – arte. Queremos valorizar, queremos dar atenção, queremos encontrar-nos naquilo que é o vosso engenho genuíno. São tantas e tão diversas as formas de se fazer arte que se torna infinita. A arte é isso mesmo, infinita. É por isso que se saúdam os artistas que vão surgindo, que vão aparecendo com outras mundividências, com outras experiências. É um exercício artístico, todo ele, novo. Que não se deixem €ntregar dessa forma e que, no meio de toda a sua especialização, percebam a substância daquilo que é o ser e fazer arte. A arte, que é de todos, e que para todos é. Ajudem-nos a ajudar-vos.