A batalha das palavras
Quedam-se as letras sobre uma folha de papel. Estilo livre, filantrópico. A mão que as projeta resvala na folha macia, mas compacta, de branca lisura. Apodera-se da tinta emanada um líquido envergonhado, quase despido, complacente e adjetivado com palavras equidistantes.
A princípio, doses e nominação de projeto. Rasura-se, com menor ou maior agressividade. Ora se rompe a caneta e o papel, ora se afagam os mesmos junto do peito. O percurso que o membro superior traça está cingido à colocação sobre a mesa e sobre a cabeça, por forma a segurá-la, naquele movimento instantâneo e involuntário.
Trava-se, nos lugares destinados ao exercício da escrita, um eterno jogo de paciência. Subitamente, uma reminiscência. A mão bebe do mesmo cálice, apressa-se a redigir o que lhe habita a memória. Espreme, esmiúça ao máximo. De súbito, a corrente perde-se. Os movimentos não obedecem ao programa mental. Esgrimem-se processos antagónicos. A mão quer percorrer o mundo, a mente pretende apenas refugiar-se no seu canto, solitária.
O refluxo de ideias entusiasma, os olhos penetram cada pincelada, acelera-se a marcha. Emendam-se letras pouco percetíveis, enformam-se outras. A certa altura, jazidos na superfície branca, os olhos ressuscitam: movidos pelo estímulo interior sem explicação, a retina assimila o que de real se firma, perece e nasce. Quiçá se abram janelas de modo a que se veja para lá do que as vigas e o cimento impõem. Misturam-se pensamento e observação no mesmo saco, uma mão remexe e a aleatoriedade resolve.
Os olhos baixam a guarda. Sob a sua autoridade, o papel aperalta-se e bate continência. De volta ao início. Relê-se: uma, duas, três vezes. A pontuação, como perfeito fusível, irrompe. Apressadamente, a preocupação inteira-se de vírgulas e pontos, maiúsculas e minúsculas, “agramaticalidades” e neologismos. A perspetiva assume contornos subjetivos, bem como aquilo que se pretende materializar, escrevendo. A soma das duas subjetividades não resulta na objetividade. Entretanto, a paciência adentra nos índices de reserva e esgotam-se as estratégias.
Desespera-se. Subsiste a vontade de finalizar o autoproposto. Vagueia-se pela orla do processo criativo desinspirado. A tampa da caneta é corroída por uma boca trémula. As mãos sublevam-se à segurança capilar, temendo o pior. As pálpebras encerram e abrem, intermitentemente. O punho cerra com a violência de um amasso. De forma natural, o papel investe-se de uma racionalidade tal, capaz de querer desencontrar-se com a cara metade e partir sem destino. Mas não acontece.
Batem à porta. Eis os recursos expressivos! Entram à bruta, sem a menor das autorizações. Tocam no ombro do sofrível, antecipam a sua ira e tomam a dianteira. Telefonam para a base e pedem reforços: factos que sinalizaram períodos na História da Humanidade, extrações literárias, musicais, cinéfilas e da restante parafernália artística, citações retiradas de discursos pertinentes e adequados, experiências adquiridas em viagens, na vida profissional e no quotidiano, conversas de café ou a simples fertilidade do engenho mental.
O cronista compõe-se. A raiva plana e a cor da realidade retoma o seu formato. A acalmia mergulha no mar das decisões. A mão, restabelecida, ocupa novamente no trilho da continuidade.
Em tempo recorde, inicia-se a marcha de palavras sobre o papel. Esboça-se um sorriso, a água é deglutida como de um alimento se tratasse e o cigarro suprime-se pelo bafejo.
Em falta está o título, a frase-chave. Ao que tudo indica, restam ainda uns períodos de aflição.