A busca pela virtude da vida e pensamento de Sócrates

por Lucas Brandão,    19 Setembro, 2018
A busca pela virtude da vida e pensamento de Sócrates
“A Morte de Sócrates” (1787), de Jacques-Louis David
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Antes da herança platónica e aristotélica, nasceu a tradição socrática de Sócrates, um dos principais filósofos da Grécia Antiga, que se estima ter vivido no século V a.C. Os conceitos da moralidade foram primeiramente discutidos no seu método, pondo-os à prova na ética comportamental e pensativa. É no seu discurso, no envolvimento da sociedade na consideração de métricas e de perceções éticas, que se avista as fundações do conhecimento e que se instala as fundações do pensamento filosófico ocidental. Somente desse ponto de partida é que emergem Platão e Aristóteles, dupla que contribuiria mais ainda para o mote de pensar no elementar com enfoque e relevância.

Julgado e executado numa sociedade que, embora democrática, se saturava das intervenções não solicitadas, e muitas delas críticas, de Sócrates, o filósofo desenvolveu um método dialético de interrogação também conhecido por elenchus. A justiça e a bondade de uma ação seriam avaliadas na desconstrução de uma situação numa série de questões, para as quais as respostas seriam gradualmente percebidas e apercebidas. As questões surgem de forma a perceber aquilo que são as crenças subjacentes a cada sujeito, para além da amplitude do seu conhecimento. As hipóteses criadas vão-se eliminando enquanto se vão contradizendo, dando a possibilidade de se examinar a validade dos padrões e crenças de cada ser humano. Tudo até visualizar novos conceitos, novas perspetivas, conduzindo-o a um pensamento autónomo e mais aproximado da verdade. Este método, também conhecido por maiêutica, tornou-se no primeiro a ser incorporado, a Ocidente, nos marcos das estruturas sociopolíticas, pelo entendimento ético e moral que conseguiu exportar e construir, para além de se tornar importante na própria educação legal. Platão foi o responsável pela sua divulgação, ressalvando a importância do logos, direcionando para a qualidade do argumento e para a sua conversão no bem.

As diferenças do seu pupilo Platão acercam-se de questões, pois muito daquilo que chega aos dias atuais foi trazido por este. Não obstante a controvérsia, existem elementos que preenchem a diferenciação socrática, elementos que fazem parte da sua vida e do seu trabalho. Muito daquilo que é o seu caráter inquisitivo acrescentou adversidades e perturbações aos políticos atenienses, que o acusaram de corromper os jovens da sua cidade. A resposta de Sócrates impunha-se para lá das carreiras e das responsabilidades políticas, assumindo-se preocupado com o bem-estar da alma. A sua obsessão com a excelência moral, que considerava de origem divina, assim como a sua própria emergência naquela cidade, contribuía para que lhe fosse apontado o crime de heresia.

Mesmo assim, enunciava alguns dos seus mestres, como Anaxágoras ou Pródico; e de duas mulheres em particular, sendo elas Diotima (feiticeira mencionada no “Simpósio”, de Platão), que lhe havia ensinado o que sabia sobre o amor, e Aspasia, amante de Péricles, sua mestre sobre a arte da retórica. Não obstante, nada disto lhe impedia de construir alguns paradoxos que se eternizaram, como “ninguém quer o mal”, “ninguém erra ou faz mal por vontade ou em conhecimento”, “toda a virtude é conhecimento” e “a virtude é suficiente para a felicidade”. Isto porque são paradoxos que se autorreferenciam (os célebres paradoxos socráticos), resultando no famoso “só sei que nada sei”, que advém dos escritos de Platão sobre o seu mestre. É uma declaração de reconhecimento da sua própria ignorância, exigida pela virtude (frónese, ou sabedoria ou virtude no pensamento). Todo o comportamento que não era virtuoso resultava da ignorância, do desconhecimento. Mesmo assim, assumia-se como sábio no sentido limitado da sabedoria humana, reconhecendo a distância entre esta e a ideal.

Assim, assumia-se como alguém capaz de providenciar aconselhamento filosófico, comparando os jovens que o procuravam à forma como os conselheiros matrimoniais à data funcionavam. Procurava, com isto, alinhar cada um ao melhor filósofo existente, tendo em conta a mente do jovem, e comparava-se a um intermediário, quase ao ponto de ser um obstetra. Definia-se, também, como alguém sem teorias, embora tivesse conhecimento das que prevaleciam no seu tempo. As teorias, a seu ver, acabariam por impedir que a experiência e o conhecimento advindo desta se impusesse na análise feita, no caso da obstetrícia, em que se definiam as crianças que mereciam ser perfilhadas em relação às demais. Todo este empenho para perseguir e encontrar a virtude moral, convidando os demais a concentrarem-se na criação de amizades e na formação de uma verdadeira comunidade, caminho que considerava o certo no desenvolvimento social. Foi por considerar que a vontade da comunidade prevalecia que Sócrates escolheu não trocar a sua pena de morte pela de exílio.

O valor ético tornou-se numa permanente nas suas prédicas e nas suas análises, constantemente examinado em busca das virtudes intelectuais, filosóficas e éticas em contraste às materiais. São esses ideais que seriam capazes, no seu olhar, de governar os outros, justificando-se a sua oposição à democracia (embora esta questão permaneça como um debate filosófico premente). Deviam de ser os filósofos a governar os atenienses, pois eram estes que possuíam a virtude necessária para poder gerir os outros. No entanto, evitava imiscuir-se na política, porque permanecia incerto no caminho certo da sua própria vida, pelo que não considerou correto equacionar como os outros deveriam viver ou fazer com a sua vida. Perante os deveres políticos, como no período de governação da Tirania dos Trinta, Sócrates condescendeu e seguiu-os liminarmente até ao momento em que considerou que as leis eram injustas e as campanhas militares infrutíferas, limitando-se a não as acatar. Foi precisamente essa desordenação e a insubordinação social e intelectual que se assistia que motivou Sócrates a exprimir as suas visões de forma democrática, por muito que não a considerasse o regime ideal.

Por entre as conversas e as tertúlias filosóficas que foram feitas por Sócrates e perpetuadas nos registos literários de Platão, existe o registo de uma fiabilidade do filósofo perante uma voz interior definida como sinal daimónico. Isto porque o permitia perceber quando iria errar, voz essa que sentia que tinha uma proveniência muito particular, entre o mortal e o divino, o metafísico. Daimónico porque lhe dava a possibilidade de interpretar sinais divinos e de os transpor para os elementos e seres humanos e materiais, similar ao que hoje se chama de intuição. Sócrates era, também, fã de adivinhação, que o levava a empreender de forma consistente estes sinais metafísicos.

A grande herança socrática são os “Diálogos Socráticos”, escritos por Platão e Xenofonte, seus discípulos, que confrontam Sócrates com os seus seguidores e outros pensadores do seu tempo. Os diálogos são quatro, sendo eles “Fédon”, onde é relatada a morte de Sócrates, antes da qual este se debruça num pensamento acerca da vida após a morte; “A Apologia de Sócrates”, uma espécie de registo do momento em que se apresenta a tribunal e faz a sua própria auto-defesa perante a crença para lá dos deuses e perante as acusações de corromper os jovens; “Eutífron”, em que este filósofo e Sócrates procuram determinar uma definição para o termo piedade, aplicando o método socrático; e “Críton”, sendo este o protagonista de uma conversa com Sócrates sobre a justiça, a injustiça e a resposta para os vários casos de injustiça social. Para isso, procura advogar aquilo que, futuramente, em filosofia, se entenderia como a teoria do contrato social.

Entre Sócrates e Platão, as diferenças tornam-se pouco percetíveis, visto que muito do pensamento socrático acabou redigido e até filtrado pelas ideias platónicas. No entanto, distingue-se um legado particular, que é o da sua vida, que o viu morrer em circunstâncias trágicas, perante as vulnerabilidades de uma democracia que nunca o compreendeu. Se se fizer uso do método socrático, coloca-se a hipótese de ter sido Sócrates a não compreender como funcionava a democracia, que o levou à sua morte. Porém, nada acaba por negar a sua relevância no consolidar de uma civilização pródiga em pensamentos, em teorias, em olhares que o fazem uma referência inestimável para os seus vindouros pares.

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