Robert Graves, um dos grandes nomes que estudou a mitologia no ocidente

por Lucas Brandão,    5 Agosto, 2023
Robert Graves, um dos grandes nomes que estudou a mitologia no ocidente
Robert Graves / DR
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Quando se aborda o estudo de mitologias no ocidente, de um ponto de vista académico e de um outro literário, é inevitável virmos ter ao nome de um capitão do exército inglês: Robert von Ranke Graves. Nascido a 24 de julho de 1895 num subúrbio de Londres, Wimbledon, teve uma vida longa, falecendo aos 90 anos, a 7 de dezembro de 1985, em Maiorca. A sua carreira literária foi profunda e profícua, que, para além da mitologia, tem memórias da sua participação na I Guerra Mundial. O seu conhecimento minucioso dos idiomas latim e grego permitiram-no abrir mundo e mundos sobre os escritos e os vividos na Antiguidade Clássica, trazendo à ribalta muitas figuras para o seu presente e seu futuro.

Terceiro filho de cinco, entre eles dois futuros jornalistas, apreendeu do pai, um académico com carreira feita nos estudos gaélicos e célticos, de seu nome Alfred Perceval Graves, o gosto pelas mitologias. Uma infância atormentada por uma saúde frágil, entre pneumonias e sarampo, não o impediu de almejar longe, resistindo, posteriormente, à gripe espanhola e a danos sustidos na guerra. O seu crescimento ganhou realização na poesia que começou a escrever e até no boxe, modalidade na qual chegou a ser campeão escolar. Seria uma defesa que criara de forma a proteger-se daqueles que o ofendiam, tanto pelo seu estatuto socioeconómico menos favorecido, como pelos apelidos conotados com a Alemanha no seu nome. De igual modo, encontrou paixão na música, participando no coro e no qual encontrou o seu primeiro grande amor: G.H. Johnstone, que, em adulto, se tornaria num político e diplomata.

A sua primeira paixão é apresentada na sua autobiografia, “Good-Bye to All That”, primeiramente publicada em 1929. Escrita aos seus 34 anos de idade, transparece tudo aquilo que carateriza a sua vida: uma saída dos cânones pré-estabelecidos antes da I Guerra Mundial, a descoberta do ateísmo, do socialismo, do pacifismo, do feminismo e das correntes literárias que se foram instalando nesses vindos anos de 1920. A forma quase coloquial e cómica como aborda todas estas contingências levam-no a ser recebido com mais atenções, com elogios para a sua escrita um tanto ou quanto lírica, mesmo quando toca em temas tão pessoais da sua vida. Aliás, seria uma mulher que estaria por detrás do mote para esta obra, sendo esta a poeta estado-unidense Laura Riding, que também viveu uma relação passional com Graves. Apesar disso, perderia amigos após a publicação do livro, pela forma como os retratava, considerada ofensiva.

Ainda jovem, conheceu o alpinista George Mallory, que lhe faria apreciar as caminhadas pela Natureza e, de igual modo, que lhe despertaria o interesse para a literatura contemporânea. A Primeira Guerra Mundial chegaria em agosto de 1914 e Graves, com 19 anos, alistar-se-ia no exército, nomeadamente nos fuzileiros. A sua carreira seria quase meteórica, sendo que, em pouco mais de meio ano, era já tenente e, em outubro de 1915, era já capitão. Seria ele um dos primeiros poetas de guerra, redigindo sobre as reais agruras do conflito armado na frente de combate, para além de lhe dar experiência na primeira pessoa aquando da narração do papel do sargento Lamb na Guerra da Independência Americana (1940-41), sendo uma perspetiva do lado inglês. Estilhaços que lhe danificaram o pulmão, durante a célebre batalha de Somme, aproximaram-no da morte, mas acabaria por sobreviver já no seu solo natal.

No hospital de campanha em que recuperava, em Oxford, conheceria uma enfermeira e pianista profissional, Marjorie, por quem veria a sua sexualidade sofrer uma nova transformação e apaixonar-se. Aliás, seria o prenúncio de uma vida recheada de atrações por outros, indiferentemente do sexo. Muitas das suas paixões revelar-se-iam platónicas, sem grande concretização física, ficando-se por pequenos sinais ou por correspondência trocada, como no caso com Johnstone, embora o tenha marcado profundamente. Neste hospital improvisado, faria amizade com o poeta Siegfried Sassoon — muita da poesia do próprio Graves sobre ele ficaria reunida em “Fairies and Fusiliers” (1917) —, que procurava assumir-se pacifista mas que seria prevenido por Graves para não o fazer, podendo enfrentar um julgamento de guerra e, consequentemente, enfrentar a pena de morte. O trauma de guerra subsistiria na sua vida, em especial nos cheiros e nos barulhos, mas voltaria à frente de combate em 1917, sendo somente travado pela gripe espanhola, que, novamente, quase deteve a sua vida.

Entretanto, casar-se-ia com a pintora e designer feminista Nancy Nicholson no ano de 1918, num matrimónio que, no papel, prolongar-se-ia por mais de 30 anos e do qual resultariam quatro filhos. Era uma mulher muito determinada e assertiva, à imagem de Marjorie, com jeitos e trajes masculinos. Não obstante, as dificuldades que o agregado familiar sentia, tanto a nível financeiro, como a nível pessoal de Graves, por força dos traumas de guerra, seriam presentes e causariam alguns constrangimentos. Eles não foram impeditivos de se tornar aluno na University of Oxford, oscilando entre o estudo dos Clássicos e o de Língua e Literatura Inglesas (foi uma formação importante para o preparar na redação da biografia de Marie Powell, esposa de John Milton, em 1943). Vivendo nas redondezas da instituição, fez amizade com T.E. Lawrence, que viria a ser conhecido um pouco pelo ocidente fora como o “Lawrence da Arábia”, que daria origem ao conhecido filme de David Lean, datado de 1962. Aliás, escreveria a sua biografia em 1927, cujo título seria “Lawrence and the Arabs”.

Graves faria parte dos Jogos Olímpicos de 1924, numa altura em que o certame ainda incluía competições de arte. Tanto o negócio que havia criado numa pequena mercearia, como o próprio êxito académico seriam abreviados, sendo que acabou por se focar na carreira de docência após conseguir que uma dissertação lhe valesse o grau de graduado. Dois anos depois, seguiria para o Egito e para a cidade de Cairo, na qual passou a dar aulas de Literatura Inglesa, numa altura em que o Egito estava sob a alçada do Império Britânico. Consigo, levou a sua esposa, os seus filhos e a já referida poeta Laura Riding, com quem, na altura, já tinha um caso, embora consentido pela mulher (chamavam-se “The Trinity”). Aliás, a “Trinity” tornar-se-ia num círculo, dado que o poeta irlandês Geoffrey Phibbs também se envolvia com Riding, sendo quase um culto em torno desta. Tanta era a devoção a Laura que, num momento em que Phibbs tentou sair da relação, Graves foi atrás dele com intenções de o matar.

No regresso a Londres, deu-se a separação (não o divórcio) e seguiria com a sua amante para Deià, na ilha de Maiorca, lugar onde, entre algumas interrupções, viveria até à sua morte. Com Riding, fundaria a Seizin Press, uma editora que procurava trazer um novo espírito para a crítica literária. Um espírito que procurava admirar o texto, em especial o poema, do ponto de vista autorreferencial e desconstruindo o objeto estético ao mais ínfimo pormenor possível. Na década de 1930, dedicar-se-ia a redigir alguns dos livros que o notabilizaram como um dos principais especialistas das mitologias greco-romanas: “I, Claudius” (1934) teria a curadoria investigativa da advogada galesa Eirlys Roberts e tomaria o formato de uma autobiografia do imperador romano Cláudio, percorrendo os primeiros tempos do Império Romano, desde a dinastia Julio-Claudiana — a saber, constituída por Augusto, Tibério, Calígula, Cláudio e Nero — até ao assassinato de Júlio César e ao de Calígula.

Muito do que se desenrola nesta obra toma proporções fictícias, embora recorra a testemunhos dos historiadores de então, como Tácito ou Suetónio (a destacar a sua obra “Os Doze Césares” como fonte de informação, que o próprio Graves traduziu em 1957). A sequela, datada de um ano depois, elucida sobre a ascensão de Cláudio ao trono até ao momento da sua morte, para além de fazer um acompanhamento da vida de Herodes Agrippa, o último rei judaico da região da Judeia. Foram livros que, pelo sucesso financeiro que gerou, levaram Graves a conseguir liquidar uma dívida de terrenos que havia contraído. O sucesso foi tal que, para além de lhe ter valido o James Tait Black Memorial Prize (1934), subsistiu entre as décadas e chegou à década de 1970 na forma de uma série, “I, Claudius”, da autoria de Jack Pulman, com o protagonismo a pertencer ao célebre ator Sir Derek Jacobi. Não seria a primeira experiência no audiovisual de Graves, tendo uma história curta sua, “The Shout” (1929, que traz o poder de xamãs aborígenas), sido adaptada para o cinema, através do realizador polaco Jerzy Skolimowski, em 1971.

Para além da escrita, foi responsável, em 1951, por traduzir o romance mais conhecido (e talvez o único que chegou aos nosso tempos) da era romana, sendo ele as “Metamorfoses” (ou “Asno de Ouro”), cuja autoria pertence a Lucío Apuleio, datado do século II d.C.. Sobre o Império Bizantino, Graves redigiu “Count Belisarius” (1938), concentrado no rosto do general Belisário, sendo um dos braços-direitos do imperador Justiniano na reconquista de muito território do já vencido Império Romano do Ocidente. Neste, Graves bebe a obra do historiador Procópio para extrair o máximo de informação possível. Com a Guerra Civil Espanhola a deflagrar a meio da década de 1930, Graves e a sua companheira passam a viver nos Estados Unidos, no estado da Pennsylvania. Uma fase na qual os baixos são maiores que os altos e a instabilidade assola a relação de ambos.

No regresso ao Reino Unido, começa uma nova relação extraconjugal, desta feita com a esposa de um historiador colaborador e amigo seu, Alan Hodge, que fazia parte do grupo de amigos de Graves e de Riding. Apesar de tudo, Hodge ficaria amigo da sua ex-esposa e do seu colega Graves. De seu nome Beryl, seria uma companheira com a qual teria mais quatro filhos — entre eles o designer e pintor Tomás Graves e a escritora e tradutora Lucia Graves —, fixando-se, precisamente, em Maiorca, cidade onde se tinham conhecido. A casa onde residiram é, atualmente, um museu, onde se fixou a sua fundação.

Enquanto isso, a sua obra continuava a ganhar volume e, com a co-autoria de Graves e de Hodge, ganharia vida “The Long Week-End” (1940), um retrato sociológico sobre o Reino Unido entre conflitos armados, no século XX. A abordagem feita é interdisciplinar, atravessando a sociedade, a economia, a religião, a arte, a ciência, a educação, a moda, mas também a vida íntima, desde a vida doméstica à sexual. Três anos depois, “The Reader Over Your Shoulder” desenha um manual de como utilizar o inglês na escrita, fazendo uma retrospetiva da sua evolução. Para 1946, estaria guardado “King Jesus”, no qual Graves o retrata não como filho de Deus, mas antes como um filósofo que se assume como pretendente à coroa da Judeia; para além de abordar outros episódios bíblicos de uma forma meramente profana. Passados dois anos, surge “The White Goddess: a Historical Grammar of Poetic Myth”, que resulta de artigos seus publicados na revista Wales.

É o primeiro livro verdadeiramente mitológico, no qual Graves suscita a ideia de uma divindade feminina europeia, transversal às nações, que, de certa forma, une as deusas das cosmologias europeias e pagãs e, dos seus cultos e ritos, nasce a verdadeira e pura poesia. O seu enfoque, no caso, é dado à mitologia celta, dado que o objeto de estudo é muito a poesia e a mitologia do País de Gales e da República da Irlanda. Posteriormente, aventura-se no mundo da ficção científica, estreando-se com “Seven Days in New Crete” (1949), no qual se inspira na sua obra anterior para criar uma mitologia assente numa divindade feminina, sendo ela o resultado da união de uma trindade de deusas. A sociedade tendencialmente matriarcal é totalmente desenhada por Graves, tendo uma série de categorias e de hierarquias que conhecem o seu núcleo geográfico em Creta.

Ainda antes de uma viagem pela Bíblia Sagrada e de voltar a estudar a figura de Jesus Cristo em “The Nazarene Gospel Restored” (1953, ao lado do académico Joshua Podro), viaja à Grécia Antiga e repensa a história de Jasão e os Argonautas em “Hercules, My Shipmate”. De certa forma, foi um impulso para uma obra que seria publicada em 1955, de seu título “The Greek Myths”. Trata-se de um verdadeiro compêndio de divindades e de mitos gregos, sendo que os conceitos são apresentados pela narração de historiadores notáveis desse tempo, como Plutarco ou o geógrafo Pausânidas. A constante sustentação em fontes primárias, para além de uma leitura crítica feita pelo próprio autor no final de cada apresentação, surgem como argumentos que validam e diferenciam esta obra. Apesar disso, também surgiram críticos, muitos deles vindos da academia, colocando em causa as teorias de Graves.

“When the immense drugged universe explodes
In a cascade of unendurable colour
And leaves us gasping naked,
This is no more than the ectasy of chaos:
Hold fast, with both hands, to that royal love
Which alone, as we know certainly, restores
Fragmentation into true being.

Ecstasy of Chaos”

Isto porque os comentários do inglês têm grande parte do seu mote na sua obra fictícia, nomeadamente “The White Goddess”. Graves tentou refutar a ortodoxia dos seus detratores, valorizando o potencial lírico e poético das civilizações antigas. Foi o que procurou incutir em “Homer’s Daughter” (1955), questionando a sua autoria e colocando-a do lado de uma princesa grega, abrindo espaço a que as peripécias narradas fossem inspiradas nas da própria autora. Antes, já havia explorado esse mundo do fantástico por intermédio de “Islands of Unwisdom”, em plena época dos Descobrimentos, através da figura de Álvaro de Mendaña de Neira e da sua viagem até às Ilhas Salomão e de uma perspetiva crítica sobre ela.

Não obstante, conquistaria o seu lugar na academia, assumindo o cargo de professor de poesia em Oxford entre 1961 e 1967. No final desse período, ao lado do especialista em sufismo Omar Ali-Shah, desenvolveria um trabalho orientado para a poesia persa, nomeadamente o “Rubaiyat de Omar Khayyam”. Porém, questões seriam levantadas quanto à sua base manuscrita, sendo que ambos encaminhavam-no para um localizado no Afeganistão, usado como fonte de educação das tradições sufis. Isto porque entrava em choque com a tradução feita por outros, como o vitoriano Edward FitzGerald, cuja tradução seria a mais conhecida, em especial para os Pré-Rafaelitas.

Após serem acusados de traduzir um documento forjado, a reputação de Graves sofreria um novo golpe, mesmo depois de ter sido condecorado, pela monarca Isabel II, com a Queen’s Gold Medal for Poetry. Seria, precisamente, na condição de poeta que seria reconhecido no resto da sua vida, mesmo quando foi celebrado no Poets Corner, situado na abadia de Westminster, no ano de 1985. Entre os dezasseis que foram mencionados como grandes poetas da Grande Guerra, estava Wilfred Owen, um amigo de longa data de Graves. De igual modo, não foi óbice a ser pensado como possível Nobel da Literatura, nomeadamente no ano de 1962, acabando por recair para o estado-unidense John Steinbeck.

Isto porque Graves era, afincadamente, um poeta. As próprias musas mitológicas que descrevia eram paralelismos das suas, que conheceu durante a sua vida, mesmo que durante os seus matrimónios (também no último as teve). Somente perdas de memória o viriam a condicionar e a travá-la, à data dos seus 80 anos de idade, em 1975. Os últimos dez anos da sua vida seriam vividos com dificuldades de saúde e a vulnerabilidade cardíaca que experienciava acabou por o vitimar aos 90 anos. A White Goddess que concebeu e apresentou acolhê-lo-ia para a eternidade, num túmulo que acolheu a sua viúva Beryl, falecida em 2003.

Robert Graves é mais uma daquelas figuras profundamente complexas, com várias dimensões na sua vida, entre as quais a poesia funcionou sempre como grande elo. Os amores da sua vida foram aparecendo e desaparecendo ao ritmo dos temas dos poemas; os episódios de guerra que viveu foram marcas duras e vividas de futura poesia; os mitos e as mitologias clássicas que têm, na sua essência, uma alma de poesia; as aulas de poesia que teve e que deu e a própria poesia que escreveu. Graves fez-se de poesia e de mitos, de histórias da História e de uma descoberta que nos é convidada para lá do ambiente académico. Entre divindades reconhecidas, caraterizadas e criadas, Graves é mais um caminho que temos à nossa disposição para acenar aos deuses.

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