A Casa da Música e o desafio de se tornar mais portuguesa (e dos portugueses) em 2024
A Casa da Música acolheu a apresentação da sua temporada musical nesta sexta-feira, dia 12. “À NOSSA! PORTUGAL 2024” mostra ao que vem, com intérpretes e compositores interpretados portugueses, abrindo caminho à descoberta dos valores presentes e dos achados passados. Os 500 anos do nascimento do poeta Luís de Camões e os 50 do 25 de abril são o contexto que impulsionam a temática da programática anual da Casa da Música, com um forte sentido de unir passado e presente com visão de futuro da música erudita portuguesa. Com um cardápio de jovens valores, a evocação de diferentes mentes e executantes de séculos passados é a nota dominante de uma abertura crescente da literatura musical portuguesa ao público em geral, colocando-o em ligação com os maiores nomes, que são habitués nestas andanças.
Para o mês de janeiro, e volvido o testemunho do jovem António Areal de peças de compositores maiores, como Haydn, Chopin, Wagner ou Schumann, foram propostos mais uns quantos momentos de encontro. Entre estes, a atividade “Eça que é Eça” (dia 13, pelas 16h), pensada por Maria João Alves, na qual se mergulha nas referências musicais do escritor Eça de Queirós; ou a presença da Orquestra Barroca da Casa da Música no cruzamento entre Mozart e o compositor do século XVIII António Leal Moreira (dia 13, às 18h). Com o coro da Casa da Música, Paul Hillier, o célebre maestro inglês, visita dia 14, pelas 18h, a sala Suggia, conduzindo uma viagem que ressuscita a música de Fernando Lopes-Graça e do renascentista Duarte Lobo.
Na semana seguinte, “Noturnos para Orquestra” (dia 20, pelas 18h) conta com a Orquestra da Casa da Música, orientada pelo francês Sylvian Cambreling e com a interpretação de Ravel e dos portugueses Emmanuel Nunes e Vasco Mendonça. Emmanuel Nunes volta a ser temática de outro espetáculo, agora do Remix Ensemble (dia 21, às 18h), o agrupamento residente de música contemporânea, conduzida pelo alemão Peter Rundel. Por fim, neste mês de janeiro, chega a “História Trágico-Marítima” (dia 26, às 21h), que reporta à dimensão marítima tão ligada à noção de portugalidade e que dá protagonismo a Debussy e a Lopes-Graça, através da Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música e do diretor musical Nuno Coelho.
No entanto, para a nossa presença, foi-nos apresentada a iniciativa “Paraíso Sinfónicos”, sendo a primeira performance da Orquestra Sinfónica nesta nova temporada. A mesma foi fundada em 1947 e com uma longa carreira dispersa por vários países, da Áustria aos Países Baixos, e com a direção de maestros vários de nomeada internacional, como Joana Carneiro, Peter Eötvös ou Christoph König. Neste caso em particular, Stefan Blunier, o suíço que dirige a Orquestra desde o início de 2021, conduziu a interpretação do pianista vimaranense Pedro Emanuel Pereira — que trouxe o seu conhecimento da obra do russo Sergei Prokofiev e do seu quinto concerto para piano — e companhia. O restante repertório executado foi o do centenário Joly Braga Santos, compositor português do século XX, e da sua Abertura Sinfónica nº 2; do versátil austríaco Franz Schreker e da peça “Memnon” e do conhecido musicólogo Luís de Freitas Branco e dos seus “Paraísos Artificiais”.
Antes do concerto, nota para a inauguração da presença de uma escultura alusiva à música, da autoria do célebre artista nortenho Soares dos Reis. Proveniente do acervo do Museu Nacional com o nome deste, tornou-se a primeira de um número de peças que serão apresentadas no espaço da Casa da Música, à luz da nova temporada musical e das efemérides celebradas. No caso, a escultura foi gizada em 1877 e fundida em 1957 em bronze, através do Fundo João Chagas, após a doação por parte da viúva deste do legado artístico na sua posse ao Estado. Discursos do presidente do Conselho de Administração da Fundação Casa da Música Rui Amorim de Sousa, do diretor do Museu Nacional Soares dos Reis António Ponte e do diretor artístico António Jorge Pacheco aludiram aos fundamentos da celebração de Portugal, ao papel do Museu na panorâmica portuense e à relevância de um[a obra de] Soares dos Reis na Casa da Música, respetivamente.
Após um cocktail dinatoire para as altas patentes convidadas [abram estas iniciativas aos demais, à proporção da música erudita, nem que seja com um preço simbólico] o escalonamento trouxe, de início, a “Abertura Sinfónica n.º2”, uma peça que traz o conhecimento das danças populares e um forte sentido melódico, embora tendo em conta a importância do ser natural, mediante as instruções formais habituais. Composta aos 23 anos de idade de Joly Braga Santos, abriu horizontes com uma peça relativamente breve, mas muito completa em texturas musicais. As viagens que foram permitidas levaram-nos a lugares distantes, alguns deles não tão remotos quanto os do concerto seguinte. Não obstante, Prokofiev, no seu quinto concerto para piano, faz pautar mudanças de ritmo abruptas, muitas delas rápidas e velozes, que evolui para um remate mais profundo e pesado.
O russo compô-la distante da sua terra natal, da qual havia saído por força das restrições artísticas impostas pelo estado soviético. Os seus diferentes andamentos foram ouvidos de forma integrada, é certo, mas as tradicionais pausas fizeram com que o som se tornasse mais fragmentado, embora, talvez, o mais consistente do ponto de vista melódico e harmónico. Também houve a oportunidade de ouvir uma peça a solo de Pedro Emanuel Pereira, composta pelo mesmo, que saudou o público e a importância de manter viva e presente a cultura portuguesa.
Ido o intervalo de quinze minutos, chegaram os “Paraísos Artificiais”, de Freitas Branco, são nota da chegada do modernismo à música portuguesa, com paralelismos com a música do francês Claude Debussy ou o russo Igor Stravinsky, fugindo de normativas tonais comuns e indo mais além. Ao ouvido, uma peça que, já pegados com um certo tom anestésico, acabou por cair de forma mais ou menos monótona, por mais que a qualidade da composição e da sua interpretação seja inquestionável. Por fim, Schreker concebeu — embora não a finalizando — a ópera “Memnon” com fundamentos orientais e do Antigo Egito, remontando a um semideus com esse nome.
As peças foram sendo escritas no verão de 1933, que o austríaco passou em Portugal, e procuram incutir vivacidade sonora, deslocando-se ao máximo aos expoentes, aos limites, à maneira dos fins do Romantismo. Foram esses pontos de estirada que visitamos e que, subitamente, nos foi despertando, com muita percussão à mistura, sem esquecer a dos violinos e dos contrabaixos, omnipresentes, assim como os registos de sopro, desde o oboé ao trompete. De igual modo, nota para a presença de pandeireta e dos míticos “ferrinhos” na última interpretação.
Num ponto de vista pessoal, de quem viu um concerto de música erudita pela primeira ocasião, saúda-se a ausência dos telefones da sala de concertos — à exceção dos intervalos entre interpretações, mas mais não se poderia pedir. Desta forma, a postura foi sossegada e compenetrada, quiçá talvez demasiado relaxada, mas como não amolecer com tamanhas sonoridades. O respeito — nota para um público em muito jovem — fez-se notar numa fruição mais apurada e verdadeira da música erudita, com tantas nuances, com tantas camadas, desde os instrumentos, aos seus intérpretes, sem esquecer a gesticulação do maestro (que presença a de Blunier). A tentativa de perceber o que ele orientava aos seus músicos foi uma constante, à imagem de ir em busca das camadas instrumentais e de perceber os seus pontos de ligação.
Em suma, o evento foi uma saída da zona do conforto musical, em busca de mais caminhos da música portuguesa. Uma saída da zona de conforto para quem está habituado a repertórios habituais, que perpassa os nomes de Beethoven, Mozart ou Vivaldi; e uma saída da zona de conforto para quem viaja para a música pop ou para registos urbanos e rurais para encontrar o sentido de Portugal. Porque não as partituras, porque não as composições musicais, porque não o mundo da música erudita? O convite está aí e a programática está apresentada. O repto fica lançado para que se desafiem ouvidos e corações e que se sacuda a premissa de que a música erudita é só para alguns.