A casa dos segredos do Sr. Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa
Uma das funções do Presidente da República é conhecer as inúmeras realidades e desafios que o nosso país enfrenta; deste modo, parece natural que uma das características fundamentais de alguém com esta função seja a curiosidade. Isso implica conhecer diversas classes, gerações e geografias. Para conhecer e formar uma opinião, é necessário ouvir diversos interlocutores e agentes – os vários lados da questão, como se costuma dizer. Então, qual é o problema de alguns influencers terem ido ao Palácio da Presidência conhecer o Presidente? Bem, a questão que coloco, de forma um pouco malandra, já dá a resposta.
Será que o evento foi o Sr. Presidente da República conhecer os influencers ou o contrário? Será que conhecer estes influenciadores digitais permite conhecer uma realidade que toca a inúmeros jovens? Qual terá sido a verdadeira intenção, politicamente falando? A cada uma destas perguntas vou tentar dar uma resposta, caindo no erro de as minhas opiniões serem infundadas e meramente especulativas – ainda assim, acredito que seja um caso de reflexão importante.
Como a jornalista do Expresso Ângela Silva escreveu, “O efeito foi bombástico. Em poucas horas, as selfies do meeting invadiram as redes”. Dos convidados de honra, contam-se influencers das áreas da moda, da beleza, do humor (considero um perigo colocar um humorista no patamar de influenciador); alguns são bloggers, outros instagrammers e há até quem esteja ligado à rádio, salvando este mercado (sector), em declínio até há uns tempos – uma manobra de marketing inteligente, sem dúvida. E, como um dos convidados afirmou: “Pics or it didn’t happen, right?”. Ou seja, foi uma verdadeira publicitação de um presidente moderno, atencioso e de uma conversa a que nós, cidadãos, nunca teremos acesso, apesar de supostamente se ter falado de temáticas que nos tocam e de ser um debate tão importante. E, aqui, começa a minha primeira crítica. Se o interesse era debater uma realidade moderna com jovens que não estão ligados às elites políticas e partidárias (foi assim justificado), então faria sentido organizar um debate público, com a participação e o cunho do Presidente, onde teríamos uma diversidade de locutores: influenciadores digitais, empresas, sociólogos, programadores, etc. Mas não, foi um verdadeiro reality show que, segundo os jornais, demorou o dobro do tempo, porque a maioria dos convidados queria uma foto com o rei das selfies. Na verdade, a influencer que afirmou Pics or it didn’t happen, right tem razão, a foto é a única forma de validar aquela visita informal, que foi posteriormente tão mediatizada. Ficamos até com a impressão de que a verdadeira substância do evento é o espetáculo, a teatralidade e não o conteúdo do mesmo. E a isto eu chamo reality TV, o Big Brother de Marcelo, uma verdadeira aventura para estes novos influencers que se maravilharam – fizeram questão de o mostrar nas redes sociais.
A eficácia real desta jogada (o convite presidencial) é de difícil avaliação, pois acredito que dificilmente a taxa de abstenção nos jovens mude de forma significativa depois disso. Na realidade, o que me interessa nisto é a forma como os diversos peões se movem. No que toca aos jornais, estes estiveram a lutar pela procura desenfreada de visualizações na mesma selva que as revistas cor-de-rosa, o que demonstra, como definiu Mario Vargas Llosa, a que nível chegámos com uma “Civilização do Espectáculo”. A notícia em si é de pouca relevância, mas ainda assim circulou pelos diversas plataformas. Só parou quando os leitores decidiram que queriam outra diversão, outro espectáculo ainda mais interessante e teatral. Desta forma, os guardiões da filtragem da informação, tanto no que toca à sua qualidade como à sua veracidade, juntaram-se a esta cultura de desprestígio da política e das instituições. Para tristeza pessoal, parece-me que estamos no mesmo curso que outras democracias referenciadas positivamente por académicos, simplesmente a uma velocidade diferente. Nos EUA, os comentadores discutem o conteúdo dos tweets de Donald Trump, que, através de um número limitado de caracteres, lança o caos e, no nosso subconsciente, aplaudimos com regozijo.
Voltando ao político Marcelo. Um dos grandes problemas de termos um Presidente demasiado mediatizado é que, naturalmente, ele não iria parar pela publicitação tradicional: investiria noutras plataformas, com o intuito de chegar a novos públicos. Inúmeros anos a falar na televisão, sem contraditório, em horário nobre, podem ter criado um efeito de pura satisfação com o facilitismo. Por outras palavras, habituou-se a viver e a falar fora de debates e de forma bastante consensual, da mesma forma que Marques Mendes está a tentar traçar o mesmo caminho (ninguém se vai admirar se ele se vier candidatar a Presidente da República – até já foi ao Gente Que Não Sabe Estar!). E como tentar que essa forma de fazer política perca valor evolua? Bem, substituir influencers por jornalistas pode ser uma solução. Os primeiros não fazem perguntas difíceis, por defeito têm falta de informação, não estão a par da política nacional. Porém, têm uma característica que Marcelo compreendeu muito bem, o que só mostra que não é um mero político: estes jovens têm acesso directo e exclusivo a milhares de outras pessoas da mesma geração, alguns começaram agora a votar, outros irão fazê-lo num futuro não muito longínquo, onde talvez a democracia tenha contornos bastante preocupantes. Possivelmente este jovens eleitores só conhecem uma figura pública ligada à política: Marcelo Rebelo de Sousa.
Esta jogada foi decididamente populista e, porventura, perigosa. Há uma alienação da função de Presidente, da política e dos inúmeros interesses dos jovens, actualmente. Marcelo não precisa de compreender a linguagem criada nas redes sociais pelos seus utilizadores, só precisa de garantir que uma certa mensagem passe eficientemente. Com isto não quero afirmar, obviamente, que ele quer criar, aos poucos, um regime totalitário, com ele na função do Pai da Nação. Porém, este é o caminho ideal para futuros Pais da Nação que aí poderão vir. Pode parecer uma ideia completamente descabida, mas não nos devemos esquecer de que acabámos de nos juntar aos países com um partido de extrema-direita no parlamento, e esses utilizarão esta plataforma para nosso prejuízo. E pela Europa fora, temos inúmeros casos de políticos de extrema-direita que estão a utilizar o mediatismo para perverter a democracia; Salvini, em Itália, veio da rádio e também adora tirar fotos e festejar com os seus respectivos eleitores; em Portugal, André Ventura, traça o seu caminho através da CMTV, onde fala de futebol (as temáticas das manchetes dos medias nacionais). Mas este clima não se cria de um momento para o outro e, naturalmente, não ficaria preocupado com situações pontuais, até porque as aparições dos políticos no espaço público são importantes, são até uma lufada de ar fresco numa democracia representativa muito afastada dos cidadãos. Por isso, relembro um momento que pode ter desaparecido da memória da maioria das pessoas. Há uns meses, Marcelo decidiu, no episódio de abertura do programa da Cristina Ferreira, colocar o seu cunho pessoal ao fazer um telefonema que supostamente surpreendeu todos, como se se tratasse de uma acção espontânea. Esta é uma tática abraçada por Marcelo há já uns anos: colocar-se no patamar de uma figura omnipresente.
Fazer uma reflexão sobre o estado actual da sociedade portuguesa, com certas particularidades que a distingue de outras ocidentais, não é fácil. Acredito até que tenha meramente roçado uma superfície estranha. Ainda assim, termino com a seguinte ideia: os influencers, mais do que partilharem um lifestyle, publicitam um produto, e o produto político da estação Outono/Inverno deste ano é Marcelo. A única review que os seguidores necessitam é a seguinte: “O Presidente da República é uma pessoa afável, sempre disponível para tirar fotografias e fala connosco num registo tu cá-tu lá”, é o produto ideal. Como em muitas vertentes do capitalismo, a mercadoria precisa mais do consumidor do que o inverso. Por outras palavras, Marcelo necessita mais dos novos eleitores do que o contrário; isto é uma luta desenfreada pela conquista de um marco histórico: votação de 100%. Então está em causa uma luta pessoal. Poderão afirmar que estou a exagerar. Insisto da seguinte forma: espero estar enganado, porque, se estiver certo, dificilmente será possível voltar atrás nesta cultura tóxica de suposta aproximação do agente político ao povo e de simplificação da representação democrática. No fim de contas, o verdadeiro influenciador foi Marcelo. Ele influenciou os influenciadores, o que só prova que o número de seguidores nas nossas contas não nos confere uma singularidade, continuamos a ser peões num jogo maior.