A dimensão da tradição em ‘Domingo à Tarde’ de Éme
Este mês Éme – alias de João Marcelo – regressou para apresentar mais um álbum, “Domingo à Tarde”, o terceiro do seu reportório e sucessor do celebrado “Último Siso”. Ainda que três anos se tenham passado desde o seu ultimo LP, Éme continuou ao longo do tempo a apresentar-se em palco, dando um gostinho dalgumas das musicas que vieram a integrar este álbum. O artista participou também em lançamentos colaborativos da Cafetra, editora que tem com os seus amigos, dando acesso a demos de algumas dessas mesmas músicas.
Ora, Domingo à Tarde é uma agradável surpresa evolutiva; nele vemos Éme a mudar o seu registo, lírica e instrumentalmente. Nos versos há agora maior um reflexo do seu crescimento e participação na sociedade do que propriamente dos lamentos amorosos tão próprios do fim da adolescência ou dos trocadilhos em mensagens abstractas; uma introdução à abordagem de temas que, agora na idade adulta, lhe tocam mais.
Na primeira música do álbum, “Sem Roupa”, o cantor apresenta-se tal como o nome da canção indica, despido, intimamente professando seu amor, de uma forma que nos faz sentir prestes a entrar num mundo secretivo e voyeur que não nos pertence. O que é importante, porque daí arrancamos para um compêndio de histórias pessoais, como a de “Comboio”, em que nos conta das suas paragens para tocar de terra em terra, com pouco dinheiro no bolso, em que deixa ainda escapar alguma opinião social (“Vida é tão normal a ler sondagem no jornal / Já nem vale a pena o voto em Portugal ”); a de “Puxa a Patinha” onde nos fala da saída para o estrangeiro e de como, mesmo “esvaziando-se a cidade”, a identidade Tuga continua presente; ou a “Roma-Sé”, que nos primeiros versos retrata como, ainda que sem dinheiro, nos resta uma riqueza cultural e de espírito.
Instrumentalmente há um desvio do som mais rock que caracterizou o “Último Siso”; preservando os seus amigos e colaboradores nas teclas, baixo e percussão, Éme faz neste álbum a introdução de novos elementos, de sopro e o cavaquinho – tocados por Moxila, que dá também voz nalguns temas –, que canalizam a nossa imaginação para música popular portuguesa; é um som familiar, que sabe à modernização das memórias de um passado, estas, diga-se, muito bem relembradas neste álbum.
“Buraquinho”, rearranjada face ao demo apresentada no fim de 2015 em “Ou Sim Ou Sopas”, começa suave de guitarra e, a meio, envolve-se nas segundas vozes e no clarinete, atingindo uma certa epicidade; em “Zequinha” a combinação sopros/percussões remete-nos para, como o título indica, as musicas mais claras de José Afonso, constante inspiração em todo este álbum; “Chá com Mel” apela também a esse tal lado popular, desta através dos teclados de Lourenço Crespo, e serve também para evidenciar que este é um álbum que consegue ser variavelmente criativo, sem nunca se tornar disperso. Neste, a final manifestação da tradicionalidade portuguesa surge com a admiração de Éme pela interpretação de Adélia Garcia de “Muito Chorei Eu Num Domingo à Tarde”, da qual faz uma versão em uníssono com Moxila, para encerrar as hostilidades.
Este é um álbum rápido e que pede imediatamente para ser repetido, quer seja pelo bom sabor das melodias e voz – embaladas pela qualidade da produção de B Fachada -, quer pela curiosidade de decifrar as palavras e compreender a narrativa. Nele ferve uma paixão pelo passado cultural português e a sua preservação nos dias de hoje. É sempre um prazer ouvir álbuns deste gabarito cantados na nossa bonita língua, e, felizmente, este ano tem-se preenchido disso mesmo. À nossa!