A eficácia da castração química no abuso sexual de crianças

por Cronista convidado,    1 Maio, 2020
A eficácia da castração química no abuso sexual de crianças
John-Mark Smith / Unsplash

A castração química de abusadores sexuais de crianças tem sido alvo de recente debate no país, tanto que o tema foi levado ao Parlamento no dia 28 de fevereiro. Contudo, antes de tomar qualquer decisão sobre a sua implementação, é necessário entender o que é a castração química e qual a sua eficácia enquanto medida de redução da reincidência, contexto em que está a ser discutida. Este é um tema que levanta questões éticas e constitucionais, porém, esse não é o objeto desta abordagem, mas antes a sua adequação e eficácia enquanto medida de reabilitação.

Quanto a ofensores sexuais, existe a perceção de que as sanções aplicadas devem ser mais severas, apesar de já ter sido comprovado que essas não são eficazes em dissuadi-los. Isto pode ser explicado pela desinformação e medo que estes crimes induzem na sociedade (1), uma vez que a sua natureza e as consequências para as vítimas
são chocantes e alvo de sensacionalismo, levando a reações extremas pela população (3). Assim, a melhor solução seria excluir estes indivíduos, por exemplo, através do encarceramento, onde muitas vezes não existe a implementação de outras medidas reabilitadoras (2).

Como se define abuso sexual de crianças?

Aquando da ocorrência de um crime desta natureza, é usual a sua referência como ‘pedofilia’, parecendo que os termos ‘pedófilo’ e ‘abusador sexual de crianças’ são sinónimos quando, realmente, existe uma distinção entre eles. Os pedófilos são indivíduos que sofrem de pedofilia, uma parafilia (transtorno mental do foro sexual) reconhecida no Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM-V) e definida como “um desejo ou preferência por relações sexuais com crianças pré-púberes” (3, 4, 5). A pedofilia por si só não é um crime, pelo que os pedófilos só são considerados ofensores se praticarem algum ato punível pela lei (4). Quanto aos  abusadores sexuais de crianças, estes sim incorrem num crime previsto e punido pelo artigo 171.º do Código Penal Português (9) denominado “Abuso Sexual de Crianças”. Estes indivíduos não são, assim, necessariamente pedófilos e vice-versa (3). Além de se verificar uma constante confusão dos termos na comunicação social, isto também acontece relativamente à proposta discutida, uma vez que se destina ao crime de abuso sexual de crianças, mas é várias vezes associada à pedofilia. Fica esclarecido que não se trata aqui da pedofilia, mas sim do efetivo abuso sexual. Que tipo de tratamentos existem para ofensores sexuais?

Vários tratamentos têm sido experimentados ao longo dos anos, como a terapia cognitivo-comportamental (2), a castração física e a castração química, existindo um debate sobre qual é o mais eficaz e adequado. A primeira pretende abordar pensamentos e crenças que estão na “raiz” da ofensa, bem como os comportamentos e ações
resultantes desses (2). Esta abordagem já foi provada por múltiplos estudos como eficaz na redução da reincidência em casos de ofensas sexuais (2). A castração física passa pela remoção dos órgãos reprodutores, pelo que não é reversível (4), sendo por isso largamente rejeitada pelas suas consequências, enquanto que a química passa pela administração de substâncias químicas de modo a diminuir a produção de testosterona e controlar a libido do indivíduo, sendo reversível (1). Esta tem vindo a ganhar popularidade nos últimos tempos e é considerada uma opção ideal, pois é, alegadamente, eficaz na diminuição da reincidência, não causa dor e transtorno na pessoa, e os efeitos secundários são, maioritariamente, reversíveis (4).

A castração química como medida para evitar a reincidência

Um argumento apresentado a favor da castração química prende-se com as altas taxas de reincidência dos ofensores sexuais (5). Atualmente, esta é utilizada como sanção penal nos Estados Unidos da América, Canadá, França, Reino Unido e Polónia 6 , o que tem também sido utilizado como argumento favorável à sua implementação em Portugal. Em alguns locais a castração química é voluntária, noutros é obrigatória, e noutros é aplicada como uma pena acessória. (4) No atual debate, pretende-se que seja uma pena acessória em casos de reincidência ou de especial perversidade ou censurabilidade, independentemente do consentimento do ofensor. Aqui verifica-se a castração química com intuito punitivo e não reabilitativo. É essencial que esta seja sempre abordada de uma perspetiva reabilitativa, o que não acontece se o procedimento for forçado, tendo isto consequências a nível da sua eficácia na redução da reincidência. No entanto, no abuso sexual de crianças, os fatores físicos e hormonais não são a única explicação, existindo fatores psicológicos, culturais e educacionais que o promovem 6,7 . Pode-se questionar então se o abuso sexual de crianças se relaciona apenas com um apetite sexual ligado à testosterona, ou se existem outros fatores que levam ao abuso, tais como dinâmicas de poder. Esse parece ser o caso em várias situações, pelo que a castração química atuaria apenas num dos elementos alegadamente causadores do crime. Assim, e apesar de esta poder parecer promissora, investigadores consideram que um tratamento meramente biológico não é suficiente para a redução da reincidência, pelo que necessita de ser conjugado com tratamentos cognitivos e psicológicos, como a terapia individual ou em grupo 3.

Efeitos adversos da castração química

É relevante mencionar os possíveis efeitos adversos resultantes da castração química, seja pela redução drástica de testosterona, seja pela introdução de substâncias estranhas ao corpo. Vários investigadores promovem-na por esta ser reversível e não trazer qualquer consequência para o ofensor. No entanto, estudos mostram que este pode não ser o caso, pois já lhe foram associados, por exemplo, o aumento de peso, a atrofia testicular, a fadiga e a depressão (3, 4, 5). Ainda que raros, não é possível excluir a possibilidade de eles existirem, ou garantir que desaparecem completamente com a extinção do procedimento (7). De facto, o uso prolongado da medicação pode conduzir a efeitos irremediáveis, risco que é agravado por, em sede penal, não existir normalmente um tempo definido para a sua aplicação (5, 7). O tempo de aplicação não é um ponto referido na proposta existente para a implementação da castração química em Portugal. A castração química reduz a reincidência? Vários estudos tentaram avaliar a eficácia da castração química. Kim, Benekos e Merlo (2), na sua meta-análise, mostraram que esta pode ter melhores resultados na diminuição da reincidência do que as terapias cognitivo comportamentais. Contudo, os autores revelam preocupações quanto à forma como os estudos foram conduzidos. Uma delas é que a voluntariedade do processo pode ter afetado os resultados, pois podem existir outras razões para a redução da reincidência que não o procedimento, como a vontade do ofensor de parar, a sua deteção e punição pelo sistema de justiça ou pressões sociais. Outra razão relaciona-se com os estudos serem fracos e não 100% conclusivos, e, como tal, os seus resultados devem ser lidos com cautela (1, 2, 5, 8). Além disso, como as taxas de recusa e abandono do tratamento são muito maiores na castração química do que na terapia cognitivo-comportamental, essa acaba por ser menos vantajosa (1, 2). Então, não se pode concluir que a castração química “pode servir como garantia contra a reincidência sexualmente violenta” (2). Como tal, mesmo se a aceitássemos como uma opção eficaz, esta não é infalível, pelo que teria de ser acompanhada por outras medidas, como afirmado anteriormente (1, 5).

A castração química é uma boa solução?

Embora seja necessário travar o abuso sexual de crianças, tal não será atingido com medidas ineficazes. De forma a entender se a castração química é eficaz na redução da reincidência e afirmá-la como uma componente essencial na reabilitação de agressores sexuais, são precisos mais e melhores estudos. Seria relevante entender melhor a relação entre testosterona, libido e agressão sexual, entender que outros fatores concorrem para o comportamento que não físicos e hormonais, e que fatores levam à reincidência ou não. Isto seria essencial para concluir sobre a relação entre castração química e reincidência. Existem questões éticas que não podem ser ignoradas. Por exemplo, muitos profissionais de saúde opõem-se ao uso de práticas médicas com o intuito de punir ao invés de tratar. A proposta atual refere que o procedimento seria realizado em estabelecimentos médicos, o que levantaria um conflito ético. Poder-se-ia também utilizar argumentos de ordem constitucional, pois considera-se que este procedimento viola a Constituição da República Portuguesa. Tudo isto leva muitos profissionais a concluir que a terapia cognitivo-comportamental é preferível à hormonal (2). Conclui-se que vários aspetos sobre a castração química ainda não foram corretamente ou conclusivamente provados, pelo que a sua discussão deve considerar todas as variáveis. É essencial a maior aposta nas terapias cognitivo-comportamentais, uma vez que vários estudos mostram a sua eficácia na redução da reincidência. Assim, antes de qualquer tentativa de implementação em Portugal, a castração química teria de muito bem avaliada e ser mais bem definida do que a atual proposta o faz.

1. Kernsmith, P., Comartin, E., and Kernsmith, R. (2010) ‘Fear and Misinformation as Predictors of
Support for Sex Offender Management Policies’ Journal of Sociology & Social Welfare, 43
(2), 39-66. online; [15 February 2020]
2. Kim, B., Benekos, P. J., and Merlo, A. V. (2015) ‘Sex Offender Recidivism Revisited: Review of
Recent Meta-analysis on the Effects of Sex Offender Treatment’ Trauma, Violence, & Abuse 17 (1),
1-13. DOI: 10.1177/1524838014566719
3. Winslade, W., Stone, T. H., Smith-Bell, M., and Webb, D. M. (1998) ‘Castrating Pedophiles
Convicted of Sex Offenses against Children: New Treatment or Old Punishment’ SMU Law Review
[online] 51 (2), 349-411. available from online; [14 February
2020]
4. Ratkoceri, V. (2017) ‘Chemical Castration of Child Molesters – Right or Wrong?!’ European
Journal of Social Sciences 11 (1), 70-76. DOI: 10.26417/ejser.v11i1.p70-76
5. Tullio, E. M. (2009) ‘Chemical Castration for Child Predators: Practical, Effective, and
Constitutional’ Chapman Law Review [online] 13 (1), 191-220. available from
online; [14 February 2020]
6. Lopes, I. (2017) A Pedofilia no Ordenamento Jurídico-Penal: Reflexão crítica sobre o crime de
Abuso Sexual de Crianças e Consequência(s) Jurídica(s). Unpublished dissertaion. Lisboa:
Universidade Católica Portuguesa
7. João, A. (2017) Considerações acerca da castração química enquanto tendência punitiva
contemporânea. Unpublished dissertation. Porto: Universidade Fernando Pessoa
8. Schmucker, M., and Lösel, F. (2017) ‘Sexual offender treatment for reducing recidivism among
convicted sex offenders: a systematic review and meta-analysis’ Campbell Systematic Reviews 2017
(8), 1-75. DOI: 10.4073/csr.2017.8
9. Código Penal Português. Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março. Diário da República n.º 63/1995,
Série I-A de 1995-03-15. Atualizado pela Lei n.º 102/2019, de 06 de setembro. Ministério da Justiça,
Lisboa.

Crónica escrita por Vânia Sampaio e Sara Afonso, recém-licenciadas em Criminologia pela Universidade do Porto, e a completar mestrado em Terrorismo, Crime Internacional e Segurança Global no Reino Unido

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