A empregabilidade e a deficiência. Todos nós temos direito à autonomia
Ao contrário do que muitos ainda pensam, a deficiência não é um claro sinónimo de inaptidão nem está sujeita a um completo determinismo. Como em tudo nesta vida, há casos e casos e, tal como todos nós, felizmente, somos diferentes e temos fenótipos diferentes, não há razão para o mesmo não acontecer, também, com o portador de deficiência. É importante ressalvar que dois indivíduos com o mesmo problema poderão apresentar verosimilhanças e partilhar, como é óbvio, características em comum provenientes dessa mesma deficiência, sim, temos de ser realistas — nestes casos, é muito importante termos os pés bem assentes na terra — mas isso não quer dizer que o indivíduo, além desse determinismo, não esteja lá. Tal significa que se conhecer uma pessoa com Síndrome de Down, por exemplo, não espere que apresente o mesmo comportamento, as mesmas limitações, as mesmas capacidades, os mesmos gostos, as mesmas felicidades e infelicidades que outra pessoa com trissomia 21 que possa, eventualmente, ter conhecido antes. Ainda não assim há muito tempo, pelo menos há pouco mais de vinte anos, quando uma mãe recebia a notícia de que o seu bebé era portador de trissomia, esta era advertida pelos médicos de que o seu filho iria ser extremamente preguiçoso, pachorrento, parado, quase que a pedir permissão a um pé para poder mexer o outro. Se a mãe deixasse ficar o seu filho sentado numa cadeira uma manhã, assim iria permanecer. Quem lida, no entanto, com estes casos de perto, sabe muito bem que a história pode ser diametralmente o inverso. Muitas crianças com Síndrome de Down podem até obrigar os progenitores a fazer atletismo de alta competição quando são obrigados a correr atrás dos seus petizes — o que só faz bem para a saúde e linha. Mas bom, tudo isto para dizer que além de qualquer condicionante que uma doença ou deficiência possam trazer, há sempre um campo de actuação à nossa espera — é essa a boa notícia. E é nesse mesmo campo que toda a sociedade deve e pode actuar, ajudar e contribuir. Não digo que todos tenhamos de fazer da deficiência a nossa bandeira, nada disso, mas que, pelo menos, saibamos não estranhar o diferente quando ele partilha o mesmo espaço que nós, tão simples e básico assim. O espectro da deficiência é muito vasto, vai desde o indivíduo que precisa de cuidados e atenção 24 sob 24 horas por dia — é nesses casos que o estatuto de cuidador informal é mais do que necessário e justo — até ao indivíduo que apresenta ligeiros défices cognitivos que o impedem de seguir, apenas, o currículo escolar normal. Há, também, um grau intermédio de incapacidade, mas que não impede a pessoa de ter gosto ou jeito para desempenhar uma determinada função ou, mesmo, uma capacidade completa para algo. O que acontece nestes casos é que quando chega a altura do indivíduo abandonar o ensino especial do qual beneficia nas escolas, os pais deparam-se com este problema — “e agora, o que vamos fazer? Para onde @ noss@ filh@ vai?” A solução para esta dúvida não passa tanto pela atribuição de subsídios (são mais do que necessários mas, para o que nos interessa nesta crónica, não chegam), passa, mesmo, pela nossa capacidade social de lhe oferecermos, ao pé de nós, um lugar na comunidade, como qualquer pessoa deseja. Por essa razão é que a recente Prestação Social para a Inclusão, mesmo bem vinda, também não dá uma resposta em específico para este problema que atormenta muitos pais.
Através da escola, os alunos com necessidades educativas especiais integram os denominados PIT [Plano Individual de Transição] que, basicamente, constituem três anos de estágio laboral enquanto o educando se encontra no ensino secundário. Um dos objectivos dos PIT é que o indivíduo possa, depois, eventualmente, fazer uma transição para o mercado de trabalho e consiga, dessa maneira, desempenhar uma função e ter uma ocupação findos os anos escolares. Em parceria com as famílias, as escolas tentam encontrar um local adequado para esse estágio, que tanto pode ser nas instalações do próprio estabelecimento de ensino como podem ser desenvolvidos protocolos com entidades externas. Até aqui tudo muito bem, mas há alguns senãos. O primeiro é que grande maioria dos PIT são realizados nas próprias escolas e, o segundo, é que muito poucos conseguem um lugar garantido findos esses três anos. Não quer dizer que não haja quem beneficie dessa estratégia escolar, mas muitos, seguramente, ficam de fora. Os pais podem, e muito bem, inscrever posteriormente os seus filhos no IEFP, é verdade. Pelo que pude averiguar, há determinados protocolos dos quais as pessoas com necessidades especiais podem beneficiar, mas só são espoletados e levados a efeito caso o empregador seja encontrado pela família. Ou seja, embora existam estes protocolos, não há um programa específico de emprego para estes casos– um que vise um contacto concreto e mais facilitado com as entidades empregadoras. É então que as coisas começam mesmo a ficar difíceis e a sociedade, como sendo este um dado mais do que adquirido, diz à família, “mas do que está à espera, afinal? Meta o seu filho na instituição.” Bem sei que este é um tema delicado e, para mim, apesar das notícias e recentes casos que grassam nos nossos noticiários, é uma falácia de pensamento tomarmos a parte pelo todo. Há IPPSS’S que funcionarão bem, outras, infelizmente, não. Mas gostaria de ser bem entendida neste assunto em particular. Em primeiro lugar, uma IPSS chama-se IPSS [Instituição Particular de Solidariedade Social], certo, e recebe pela segurança social uma determinada quantia pelo cliente que alberga. Isso não significa, independentemente da componente solidária, que as famílias não tenham de pegar uma mensalidade que, muitas vezes, pode constituir um peso pesado para os bolsos dos cuidadores. Em segundo lugar, mesmo que uma IPSS funcione condigna e humanamente, não é linear que esta consiga manter um plano de actividades integrado que mantenha os clientes com capacidades adquiridas ocupados todos os dias ou que consiga colmatar as necessidades específicas da pessoa. O que estou a tentar explicar é que existem instituições que podem ocupar o seu lugar e desempenhar a sua função mas, muitas vezes, acabam por funcionar como uma salvaguarda e resposta fácil para os outros mecanismos sociais não fazerem o seu trabalho. Muitos acabam, então, por ser empurrados dando-se, assim, um corte de asas ainda maior.
Para uma pessoa com necessidades mas que consegue desempenhar pequenas e úteis funções o que será melhor? Ficar sentado quase o dia inteiro numa associação, salvo algumas excepções, ou estar, por exemplo, a desempenhar uma função, por mais pequena que seja, com o “senhor Manel do quiosque da esquina”? Claro que poderão dizer que o “senhor Manel do quiosque da esquina” não tem preparação para lidar com casos especiais, mas meus caros, muitas auxiliares (na realidade, as pessoas que passam grande parte do tempo com os clientes) que trabalham em muitas instituições também não — independentemente das pequenas formações que possam fazer já no âmbito do seu trabalho. Depois, poderão dizer, “mas o empregador não tem obrigações sociais, tem mais em que pensar.” Como disse, haverá muitos casos de indivíduos com necessidades especiais que poderão não se adaptar a uma actividade, mas há muitos outros que sim, e que conseguem, efectivamente, desempenhar uma função de forma correcta. Aliás, por vezes, de forma muito mais zelosa, responsável e exímia. Nesses casos, quando a adaptação se dá, o funcionário não se torna um peso, pelo contrário, é, também, um elo mais do que essencial. Mas mesmo assim, é de tal forma descabido, nos tempos que correm, um empregador ter mesmo uma função social na hora que emprega? Seria, assim, tão grande o prejuízo em prescindir um pouco da perfeição, nem que seja num pequeno cargo significativo, tendo em vista a integração da pessoa na comunidade? Além do mais, essa é mesmo a questão mais importante, a integração social. Muito mais do que o trabalho em si, não nos podemos esquecer que uma qualquer função, por mais simples, mesmo que seja num café, quiosque, papelaria ou pastelaria, pode ajudar a reforçar os laços da pessoa com necessidade especiais com a comunidade envolvente. Basta imaginar que num estabelecimento entram e saem, de forma constante, pessoas novas que obrigam a um maior desenvolvimento de competências sociais e no trato. Por conseguinte, a comunidade tem a oportunidade de olhar para a deficiência de forma dinâmica e activa e é, dessa forma, que se combate a exclusão e se fomenta a inclusão. Não quero com isto dizer que as associações não sejam, igualmente, precisas, mas é necessário olhar, de forma diferente, para o casos em que a autonomia é uma possibilidade, olhar para as capacidades e idiossincrasias do indivíduo e ver o que se pode fazer a partir daí. As escolas devem e podem ajudar, no exterior, a fomentar uma ponte mais sólida com as entidades que podem receber os estágios. O mesmo também tem de acontecer com IEFP — não se compreende como não há, ainda, um programa específico para a deficiência. Quanto às associações, quando notam do que a pessoa é capaz, deveriam funcionar, antes, como uma ponte orientadora para ajudar a integrar o indivíduo na comunidade e orientar possíveis estabelecimentos profissionais onde o cliente desempenha a função. Ou seja, velar a integração e estratégias de uma melhor adaptação. Em muitos casos, poderiam funcionar, antes, como um mecanismo de encaminhamento social. Dever-se-ia apostar, igualmente, em equipamentos de atendimento ao público (pastelarias, por exemplo, ou lavandarias) que visassem, como principal objectivo, a empregabilidade de pessoas com necessidades especiais. Em muitos países isso já é uma realidade. Na Argentina, por exemplo, um grupo de jovens com Síndrome de Down, denominado Los Perejiles, conseguiu abrir uma empresa de pizzas inovadora: o grupo leva os equipamentos necessários aos locais requeridos pelos clientes e aí confeccionam a refeição. Embora existam casos pontuais em Portugal como, por exemplo o Hotel Axis Porto, que também recebe pessoas com deficiência intelectual, esse seria, igualmente, um bom caminho a seguir mais a fundo. Tudo isto, no entanto, não funcionaria se a responsabilidade ficasse, apenas, de um lado — escolas, IEFP, associações, equipamentos sociais. A sociedade em geral, que somos nós, também tem de contribuir com a outra face da moeda. É duro, mas é verdade, ao contrário dos outros pais, os progenitores que têm filhos com défices cognitivos ligeiros ou, então, com um tipo de deficiência que permita alguma autonomia, chegam mesmo a desejar partir só depois dos seus rebentos. É fácil de entender, querem assegurar-se que tudo corre pelo melhor e que os seus petizes não fiquem numa situação de desamparo. O que agoniza mais, é que muitas vezes esse sentimento nem é desperto pela deficiência em si, mas sim pela falta de respostas dos nossos organismos sociais quando se deparam, afinal, com casos tão fáceis de resolver se houvesse uma real e uma verdadeira articulação entre esses mesmos organismos. Bastava só em não insistirmos num doentio cortar de asas e não negarmos o que, no fundo, todos merecemos — um lugar.