A espiritualidade frenética do jazz de Tigran Hamasyan na Casa da Música. “A música é a forma que encontro de me aproximar de Deus”
Tigran Hamasyan. Este é o nome do talentosíssimo pianista arménio que viemos ver nesta segunda-feira de dezembro à Casa da Música, no Porto, a propósito do Misty Fest, e do qual já falamos muito bem não há muito tempo atrás. O músico vem granjeando um estatuto de nicho no mundo do jazz, embora a noite na Casa da Música tenha desconstruído essa ideia de nicho, dado que a lotação foi quase total no recinto. De nicho porque, na fusão de tantas linguagens diferentes — não exclui o metal e o hard rock de um jazz profundamente folclórico —, não reúne imensos consensos, embora, como referido, esteja a conseguir encontrar o seu próprio espaço nos últimos anos (e cuja discografia comprova).
Para além de termos a oportunidade de usufruirmos deste eletrizante espetáculo (sim, o jazz também consegue destas coisas), que encerrou o Misty Fest deste ano, conversámos com o próprio para mergulhármos ainda mais e melhor na compreensão da sua musicalidade. Para Hamasyan, “a música é a forma que encontro de me exprimir e, mais importante, de me aproximar de Deus”.
Alguém com “John Coltrane, música medieval europeia, dos inícios do Renascentismo, os Beatles, Walter Smith Jr., com quem toquei nos Estados Unidos recentemente” como referência, viemos ter a um artista que afirma que cresceu a ouvir o seu pai “a colocar discos de rock clássico, jazz, funk e música clássica. Acabei por embeber tudo isto na minha música, resultado do meu crescimento e das minhas experiências em criança, experiências que se tornam sempre instrumentais no nosso futuro. Apesar de não ouvir, atualmente, muito rock, gosto muito de TOOL ou de Radiohead, estes mais no sentido da produção e da escrita.”
Produção e escrita, algo que em muito pesa e muito vale no seu processo criativo. Isto porque “criar processos é algo muito importante para mim e eu gravo-me sempre de forma a perceber o que é útil e valioso de se manter. Tenho um projeto em mente e coloco as minhas ideias em prática, ideias essas que representam quem eu sou no agora e que quero mostrar às pessoas. O processo primordial, para mim, é a escrita e a exploração e é algo que não me é possível parar.”
Neste seu novo trabalho, contou os seus “colaboradores de sonho”: os estadounidenses Justin Brown, com a bateria, e Matthew Brewer no contrabaixo (ao vivo, vimos antes Arthur Hnatek, o baterista de serviço em grande parte da carreira de Hamasyan, assim como o baixista Marc Karapetian). A presença de músicos norte-americanos vai ao encontro, não só do seu percurso formativo — partiu cedo para os Estados Unidos, depois de ter sucesso em vários concursos no seu país — mas também do repertório que trouxe: o “Great American Songbook”, o cancioneiro das canções consideradas como standard dos Estados Unidos. Por sua vez, de igual modo, composições de referência no jazz que lá foi fertilizado. Hamasyan trouxe o cancioneiro norte-americano e transpô-lo em “StandArt”, o seu mais recente álbum.
Neste, mergulhamos mais num discurso corrente e, de certa maneira, clássico, embora sem dispensar as nuances improvisadoras e algo excêntricas que transcendem o formato do estúdio. Sobre a interpretação deste cancioneiro, o músico disse que “já era um desejo que tinha de longa data. Apesar de ter a minha própria música, refleti bastante nos últimos tempos sobre projetos que queria concretizar e decidi fazer arranjos de canções destes repertórios, para além de colaborar com músicos estadounidenses com quem queria trabalhar há já muito tempo.”
À imagem de tantos outros projetos com tantos outros músicos, foi a pandemia que lhe permitiu encontrar a janela de oportunidade de desbravar esses caminhos alternativos às suas raízes. “Foi um projeto que me deu muito gosto, que me desafiou imenso e que me fez redescobrir lendas e as suas melodias, dando-me uma visão incrível e fazendo-me estudar ainda mais de forma a colocar o meu cunho e de as dotar de ainda mais originalidade. Explorar as possibilidades de criar formas diferentes de composição e improvisação.” A improvisação que é tão querida ao arménio e que lhe permitiu saltitar do seu assento umas quantas vezes, enquanto abria o leque dos seus dotes musicais, à medida que sacudia a cabeça e estendia as suas composições para lá das partituras.
De certa forma, é uma viagem que vai de encontro à filosofia musical de Hamasyan, sem nunca deixar de parte a música folclórica. “Música folclórica de qualquer lugar do mundo é algo que pode conectar diferentes culturas entre si, porque se trata de uma experiência tão profunda, de uma consciência humana elevada e que liga vários séculos.”, refere. “É parte da minha linguagem musical, parte da minha expressão musical. Eu trago música folclórica arménia a partir da minha visão como compositor e como improvisador, que bebe das influências que tive, para lá deste género. Apresento o resultado desta mistura, mas, na raiz, parto dessa música folclórica da Arménia”.
A esta, junta o mencionado jazz tão estadounidense e a também sua música erudita (ou clássica), da qual também fez ponto de passagem e de permanência. Sobre a distância que se cria em relação a esta, Hamasyan pensa que é algo que deve ser diagnosticado cedo. “A educação musical parte muito da iniciativa dos familiares, dos pais, logo no crescimento da criança. Se crescerem num ambiente em que estão expostos a vários géneros musicais, maiores as possibilidades são de que, mesmo não sendo músicos, terão um sentido de compreensão mais amplo e entenderão melhor a música jazz e a música clássica. Se não o fizeres desde cedo, não podes esperar que, aos cinco ou seis anos, vão para a escola e comecem a desbravar caminho no repertório da música clássica.”
Ao mesmo tempo, trata-se de uma resposta ao seu receio de a ver desaparecer: “99% da música folclórica, infelizmente, tornou-se em objetos de museu, em artefactos, que não são mais algo vivo, mas antes como registos das tradições. Mesmo que haja o regresso à vida, vendo de uma perspetiva de fora para dentro, não há o entendimento completo daquilo que a música folclórica tem em si e acaba por não se coadunar com o status quo do mundo atualmente e com o dia-a-dia de cada um de nós.
No entanto, isso não significa que não é importante resgatar essa música. Existe a necessidade de nos reconectar, embora o futuro não pareça risonho, dado que exige que nos aprofundemos nas nossas culturas e, como tal, torna-se algo fora da norma. Se não conheceres as tuas raízes, não sabes de onde vens e acaba por ser difícil sobreviver. É o que acontece com a música folclórica e é importante que ainda o relembramos o máximo que podemos.”
Foram referências que encontramos em pleno na sua performance, recheada de divindade e de espiritual, dotada de uma aura que Hamasyan assume já ter sentido nos seus concertos. Trata-se de “um sentimento de alegria e de elevação espiritual inexplicáveis. Com outros músicos ou mesmo sozinho, a conexão que sinto com a espiritualidade e a sensação de euforia a si subjacente é algo que assumo como muito especial, são momentos que estimo de forma muito especial.” A conjugação da noção de divindade e da expressão folclórica, própria das comunidades locais e regionais, predomina no penúltimo álbum da sua autoria, “Call Within” (em português, um chamamento vindo de dentro – daí o título invocar os chamamentos), lançado em 2020.
Foi o mesmo que se desdobrou no alinhamento da noite musical a que fomos assistir. Assim, tornou-se a encarnação do ser musical de Hamasyan: apaixonante, vibrante, recheado de infusões clássicas e modernas, locais e universais, entre o mais duramente real e o mais deslumbrante imaginado. Um jazz transcendente, uma clássica fulgurante, um sentido sempre divinizante e espiritual, integrado com as gerações idas e vindas. São exultações instrumentais — destaque grande para os solos eruptivos da bateria de Hnatek — que alcançam a tal transcendência que nos bate à porta e para a qual precisamos de estar predispostos e recetivos para nos deixarmos (e)levar. A dimensão corporal deixa-se menear e envolver por tais melodias que oscilam por pautas que ficam por ser desmistificadas, por mais convulsivas que sejam na sua interpretação física.
A plenitude que emana como músico e como um artista na total amplitude da sua função faz com que Hamasyan seja uma espécie de pastor, de agente espiritual, de uma figura que faz a ponte entre a tangibilidade e o etéreo. Um autêntico diletante pelos tempos, sem nunca perder a noção de sagrado e de a respeitar e de a estimar com a máxima delicadeza e subtileza. Não espanta sabendo a sua definição de arte: “para mim, o propósito da arte é o de conectar com uma realidade interna num prisma espiritual e só faz sentido tocar, por exemplo, numa igreja. Em vez de recitar um texto sagrado que o foi por centenas e centenas de anos, acho que as pessoas entendem melhor a mensagem a partir da música”.
Também no sagrado há noções mais ou menos malditas, como o descarrego ou o exorcismo. Pois bem, Tigran Hamasyan fez questão de eliminar quaisquer vultos e sombras que povoassem a Casa da Música e o ouvido dos mais céticos. À imagem do que vem fazendo por esse mundo fora, colocou as narrativas e as lendas do seu país ao serviço da música e de um bem maior, de uma invocação constante do sagrado. O seu “StandArt” permanece vivo e em constante ligação com o divino, com uma espiritualidade da qual a música nem sempre vive. Uma espiritualidade que está ligada à ancestralidade e ao seu revivalismo. O jazz quer-se vivo e dinâmico, mas, com Tigran, vai mais longe. A transcendência faz-se do que não se confina aos sentidos e viaja por dimensões que são bem mais universais do que se calcula. A aproximação ao divino é a ascensão aos céus e é um exercício espiritual que Tigran Hamasyan consegue, com mais ou menos frenesim, proporcionar. Por mais missas destas.