A estética aprimorada de ‘Blade Runner 2049’ quase ofusca as suas falhas

por João Miguel Fernandes,    9 Outubro, 2017
A estética aprimorada de ‘Blade Runner 2049’ quase ofusca as suas falhas
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O propósito da vida humana é para servir, e mostrar compaixão e vontade de ajudar os outros“, Albert Schweitzer

O que nos define enquanto humanos? De que é feita a nossa alma e de que forma é que as nossas memórias moldam a pessoa que somos no dia a dia?

Philip Dick explora pouco o propósito da vida humana no seu livro “Do Androids Dream of Electric Sheep?”. Aliás, explora poucas temáticas que o filme de Ridley Scott acabou por criar. Contudo, uma das questões centrais em ambas as obras é a servidão. Estarão cá os andróides para nos servir? Seremos nós servos de um qualquer Deus? O que nos diferencia dos andróides? A nossa alma? Será ela feita de compaixão?

Em 1982 nascia uma obra que iria mudar a forma como vemos a sociedade e influenciar não só o cinema, mas também os videojogos, a literatura, a organização social, a moda e tanto mais. Contudo, essa influência só chegaria cerca de dez anos mais tarde, com o lançamento do “Director’s Cut”, onde Ridley Scott nos apresentava algumas diferenças significativas da versão cinematográfica. Falamos naturalmente de “Blade Runner“, o filme que foi um autêntico caos durante a sua produção (Harrison Ford chegou a ser despedido a meio da produção), sendo quase aleatória a forma como se tornou objecto de culto.

Agora, em 2017, “Blade Runner 2049” traz de volta Ridley Scott (agora como produtor), Harrison Ford, Edward James Olmos e Hampton Fatcher (argumentista do filme original), assim como o ambiente nocturno único de uma Los Angeles que nos faz sonhar, muito graças à identidade sonora criada pelo grego Vangelis e transportada de forma magistral para este filme por Benjamin WallfischHans Zimmer.

Se há algo que Blade Runner 2049” faz é manter-se no mesmo universo de criação do original. A banda sonora presta homenagem (é praticamente uma réplica da original) à que Vangelis criou em 1982, essa banda sonora que nos puxou para dentro de uma cidade cyberpunk caótica e claustrofóbica. Além da banda sonora existem frases iguais, momentos repetidos e personagens do filme original.

Blade Runner 2049” explora a mesma temática do original, mas de pior forma. Somos constantemente invadidos por diálogos sobre a diferença entre realidade Vs memórias criadas, ou humanos Vs seres criados artificialmente, mas na verdade o que define a realidade da ficção senão as memórias? Como sabemos que são reais? Quantas vezes na nossa vida nos lembrámos de momentos que afinal não aconteceram mesmo assim? Isso torna-nos “menos humanos”? “Blade Runner 2049” expande a questão filosófica para estes campos mais objectivos, mas ao mesmo fá-lo de forma precipitada e forçada através de quase todos os personagens.

A história apresenta poucas novidades, embora o twist principal do filme acarrete algumas consequências importantes no personagem principal. K (Ryan Gosling) tem como missão caçar os Replicants que fugiram de LA. Durante uma dessas “caças” descobre um segredo que vai bem além da sua simples missão. A sua cidade, Los Angeles em 2049, sofreu várias alterações desde a última vez que a vimos em 2019. Se no filme original a cidade assumia papel de personagem, aqui não é diferente. As imagens de LA em 2049, após o blackout tecnológico geral, são belíssimas, graças ao incrível trabalho do super talentoso Roger Deakins e da banda sonora asfixiante, com particular destaque para a edição de som. Ao longo do filme o personagem K debate-se com a sua própria origem. Será ele mesmo um replicant ou um humano?

O personagem de Ryan Gosling, K, é bastante similar ao de Deckard no filme original, embora Harrison Ford seja ofuscado por um genialissimo Rutger Hauer, enquanto que Ryan Gosling não tem rival à altura durante todo o filme (poderia ter sido Jared Leto). No que toca a personagens o filme fracassa. A personagem romântica de K pouco acrescenta ao filme além do debate sobre o que é real, sobre a forma como os nossos sentimentos podem ser moldados. Essa personagem fracassa, em grande parte, não por culpa da actriz Ana de Armas, mas por culpa do argumento. Não há profundidade suficiente na personagem além de servir de muleta emocional ao personagem principal, o que até se compreendia caso a sua aparição fosse menos de metade. No que toca à personagem de Luv, o fracasso está ligado à fraquissima interpretação da actriz holandesa Sylvia Hoeks e não tanto particularmente ao seu personagem. Robin Wright encarrega-se bem da sua personagem feminina com forte personalidade, algo que já nos tem habituado nos últimos anos. Por fim, sobra Mackenzie Davis, que está no filme quase para nos fazer lembrar de Pris (Daryl Hannah em “Blade Runner”) e ajudar novamente ao avançar do argumento.


Relativamente aos personagens masculinos é difícil entender porque é que o personagem de Jared Leto não é mais explorado. Este é claramente o papel mais diferente de todo o filme e aquele que poderia ter criado alguma desestabilização positiva na história. Contudo, Leto, ou Wallace, tem poucas cenas de relevo. Fica a ideia de que o seu personagem poderia ter ido bem mais além, mas que de algum modo os argumentistas não quiseram explorá-lo. O cameo de Edward James Olmos como Gaff é totalmente despropositado e serve apenas como prémio de consolação aos fãs do filme anterior, assim como o aparecimento de Deckard (Harrison Ford). O personagem principal do filme original tem pouco tempo de antena, mas bastante relevo, infelizmente. Dá-nos a noção de que o personagem foi encaixado no argumento apenas como simbolismo ao filme original e alavanca para desbloquear o processo final da história. O seu personagem é fraco, andando várias vezes a “levitar” entre cenas, sem saber bem onde se encaixar. Acaba por ser a chave de todo o puzzle e fecha magistralmente todo o filme, embora os louros devam ser dados ao argumento e não ao personagem.

À primeira vista a grande diferença entre os dois filmes é a forma como no original a questão sobre o que significa ser humano nos é colocado subtilmente, com momentos naturais, enquanto que nesta sequela somos praticamente empurrados para estas questões. Por um lado é interessante ver a perspectiva de cada personagem sobre o lado humano Vs fabricado, mas por outro sentimos enquanto espectadores que nos estão a obrigar a debater sobre este tema, algo que deveria surgir com mais naturalidade.

A realização do filme é soberba. Denis Villeneuve estudou ao detalhe cada plano, cada característica do filme original, cada elemento da cultura actual e criou uma obra que vai ainda mais além do que o de 1982 criou (a nível técnico, não estético). Do ponto de vista técnico “Blade Runner 2049” é uma obra prima. A cinematografia de Roger Deakins aliada à edição de som tornam este filme numa das melhores obras do cinema de acção dos últimos anos, possivelmente a par com “Mad Max: Fury Road” (2015). Os planos, cortes, sequências e elementos cénicos estão primorosos, criando um ambiente que só conseguimos mesmo encontrar no filme original.

Contudo, a imposição filosófica das noções de realidade e definição de ser humano tornam o filme algo exagerado. Não existe um fluxo natural de acontecimentos, embora a história seja interessante. Todos os elementos do filme anterior (excepto a cidade e banda sonora) que migram para este falham redondamente. Desde os personagens de Deckard e Gaff, ao aparecimento de Rachel ou à tentativa de imitação de certos elementos temáticos. Os personagens femininos estão francamente maus e isso prejudica um filme que tem poucos personagens realmente bons. As cenas românticas entre Ana de Armas e Ryan Gosling estão claramente a mais e poderiam ter sido encurtadas, servindo o mesmo propósito e não maçando o espectador em demasia com a mesma questão da realidade das coisas e dos sentimentos.

É na história que o filme surpreende, embora não seja incrível, consegue terminar de forma bastante positiva, com um twist algo apressado, mas convincente. Apesar do tema ser interessante e explorado de forma perspicaz, Blade Runner 2049” fica a um largo passo do “Muito Bom”. É uma sequela aprumada, esteticamente deliciosa e com um argumento sensato, embora tenha falhado redondamente em trazer o personagem de Deckard de volta e em ter tentado trazer demasiados elementos do filme original.

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