A eternidade sonora do príncipe do Soul: Marvin Gaye
Marvin Gaye partiu aos 44 anos. Foi assassinado pelo próprio pai enquanto tentava pôr fim a um confronto entre os seus pais. Foi uma vida sofrida, que culminou num final trágico. Perdeu-se alguém que não era só muito novo, mas também um dos grandes rostos de uma música pela paz, sustentada em voos vocais de grande profundidade. Gaye tinha subido a pulso e conseguiu chegar ao ponto de ser ele o responsável único pela vertente criativa da sua música, numa fase em que a segregação racial ainda se manifestava na indústria musical. Foi, assim, alguém que, para lá de irreverente, foi também inovador e deu uma amplitude de voz a sons mais funky e jazzy que era pouco usual. A revolução que desejou arrastou a gravadora Motown, que ajudou a quebrar esses preconceitos e a abrir espaço à música afroamericana. Sem Gaye, porém, nada disto seria possível.
Marvin Pentz Gaye Jr. nasceu a 2 de abril de 1939, em Washington D.C., capital dos Estados Unidos, e foi ferido mortalmente um dia antes de completar 45 anos, em Los Angeles. Foi nessa mesma cidade que cresceu, filho de um ministro da igreja e de uma doméstica. Cresceu com a sua família, ao lado de três irmãos, num bairro com condições degradantes na capital do país, embora vivendo numa habitação construída pelo Estado. Foi precisamente na igreja, na Pentecostal — que defendia os costumes rígidos e a adesão ao Velho e ao Novo Testamentos — onde o seu pai exercia, que começou a cantar. Apesar do seu pai o apoiar nesta fase, exercia uma grande violência nos filhos, chicoteando-os frequentemente, especialmente em Marvin. Gaye descreveu a sua infância como uma monarquia tirana, em que o seu pai era o monarca déspota, e falava da sua mãe com grande admiração, que o incentivou a concretizar o seu sonho de ser cantor e a evitar que se suicidasse.
Deambulando entre várias escolas, foi juntando-se a algumas bandas de um género musical conhecido como o doo-wop, uma espécie de R&B cantada sem o recurso a instrumentos e, por norma, por grandes grupos de vocais harmonizados. Porém, a sua vida familiar piorava e Gaye juntou-se à Força Aérea, que lhe desapontou e que, para dela sair, fingiu ter uma doença mental. No regresso, e ao lado de Reese Palmer, Chester Simmons e James Nolan, viria a fundar o quarteto The Marquees, que herdava a experiência que Gaye havia tido com esse género musical. Todavia, seria uma experiência fracassada até à sua transformação em Harvey and the New Moonglows, agora sediada em Chicago, com a chancela de Harvey Fuqua, um dos fundadores da célebre banda afroamericana Moonglows. Após algumas experiências positivas, em 1960, viriam a separar-se e Gaye passou a seguir uma carreira a singular, em Detroit, depois de algumas sessões musicais, tanto com a voz, como com os baixos. Aqui, começaria a sua prolongada carreira com a editora Motown, cujo presidente, Berry Gordy, havia ficado impressionado com o talento nato de Gaye.
O desejo deste era o de ser um músico de jazz, embora o caminho lhe fosse proporcionar um rumo distinto, começando já aqui. Foi nesta fase que passou a ser conhecido como Marvin Gaye e lançou o seu primeiro álbum. “The Soulful Moods of Marvin Gaye” (1961) traz uma série de reinterpretações de grandes êxitos do jazz, mas também algumas novas, como “Let Your Conscience Be Your Guide”. Porém, os seus compromissos profissionais seriam mais nas funções de baterista de diferentes bandas também chanceladas pela Motown, conhecida por potenciar diferentes talentos musicais afroamericanos. Porém, Gaye também comporia, não só para si (“Stubborn Kind of Fellow”, “Hitch Hike” ou “Pride and Joy”), mas também para outros (co-escreveu “Beechwood 4-5789” para a banda The Marvelettes). Um novo álbum era, como tal, natural, e assim chegou “That Stubborn Kinda Fellow” (1962), onde começou a contar com o apoio do compositor Mickey Stevenson numa derivada que começava a ganhar o R&B como protagonista.
Os êxitos foram sucedendo-se e os concertos começaram a surgir, entre eles um célebre no Regal Theater de Chicago, que lhe valeu o disco “Marvin Gaye Recorded Live on Stage”. Nesse mesmo ano de 1963, interpretou “Can I Get a Witness”, mais um êxito para a já sólida lista de hits da sua contagem pessoal. Entretanto, oportunidades para duetos surgiram e Gaye agarrou-as, nomeadamente com Mary Wells em “Together” (1964), dando alma a músicas como “Once Upon a Time” e “What’s the Matter With You Baby”. A solo, cantaria “How Sweet It Is (To Be Loved By You)”, uma música que celebrizou e que foi homónima do álbum que lançou em 1965. Com uma popularidade que o conduziu à televisão, reinterpretou duas músicas da banda The Miracles — “I’ll Be Doggone” e “Ain’t That Peculiar”, que levou ao milhão de vendas. Porém, aquilo que o faria atingir o verdadeiro apogeu seria, para lá da dupla com Kim Weston (“It Takes Two” atingiu alguma fama), a parceria com Tammi Terell. Os dois eternizariam canções como “Ain’t No Mountain High Enough”, “Ain’t Nothing Like the Real Thing”, “You’re All I Need to Get By” e “Your Precious Love”.
Ambos atuariam com assiduidade juntos, até a outubro de 1967, em que Terrell desmaiaria nos braços de Gaye numa atuação no estado da Virgínia. O diagnóstico seria um dos piores possíveis: um tumor maligno no cérebro. A desilusão do cantor com a indústria musical conjugou-se com a tristeza que sentiu com a doença da sua parceira. Porém, deu seguimento à sua carreira e, para lá de cantar o hino num jogo da World Series, do campeonato de basebol nacional, gravou um dos seus êxitos mais conhecidos ainda hoje. “I Heard it Through the Grapevine” seria (mais) uma reinterpretação dos The Miracles que venderia mais de um milhão de cópias. Um ano depois, em 1969, “Too Busy Thinking About My Baby” e “That’s the Way Love Is” também fariam sensação nos rankings, culminando no álbum “M.P.G.”, o seu álbum mais bem-sucedido dessa década. Depois de produzir “Baby, I’m For Real” e “The Bells” para a banda The Originals, Gaye deparar-se-ia com uma depressão, após a morte da sua parceira Tammi Terrell, em março de 1970.
Depois de recuperar, e após equacionar uma carreira no futebol americano, o seu ênfase mudou. A música que se vinha produzindo então começava a avançar pelos caminhos do comentário social e político, apesar de recomendações vinda da gravadora para não o fazerem. Porém, e após a rebelião que afetou a cidade de Los Angeles em 1965, que visou combater a discriminação racial nas relações com o emprego, com o ensino e com a própria polícia e que fez 34 mortos e mais de mil feridos, Gaye sentiu que era necessário protestar. Apesar dos avisos, tornou-se curioso por explorar o Black Panther Party e o seu apoio às comunidades afroamericanas desfavorecidas e, apesar de não concordar com a sua atuação violenta, decidiu fazer algo pelo estado das coisas. Surge, assim, o álbum e a música “What’s Going On”, que problematiza a temática da guerra, especialmente a do Vietname, os abusos de poder, com referência ao motim racial de 1967, em Detroit, que fez algumas mortes e bastantes feridos, e ao tiroteio a estudantes de Kent State, uma universidade no estado do Ohio, em 1970, num protesto anti-guerra feito por esses estudantes. Para além destas temáticas, também o abuso das drogas e as questões ambientais foram temas prementes que colocaram em causa o seu estatuto.
Porém, seria um álbum fundamental na viragem de tom e de finalidades da música de Gaye, um discurso que influenciaria nomes, como Stevie Wonder ou Barry White, e que faria com que tivesse um novo estatuto: uma referência pública para a mudança social e uma inspiração futura. A música “What’s Going On”, lançada em 1971, só seria lançada após a ameaça de greve por parte do cantor em relação à gravadora. Foi uma fase em que conseguiu arrecadar total e completo controlo criativo e em que colocou o álbum em discurso consigo mesmo, fazendo dele um ciclo de canções baseado na “What’s Going On”. Colocou a perspetiva de quem assume as letras e as suas ideias como um retornado da guerra do Vietname que se vê confrontado com outro cenário de injustiça, pobreza e ódio. Outros tons que definem o caráter deste álbum são “Mercy Mercy Me (The Ecology”) e “Inner City Blues (Makes Me Wanna Holler)”, dois hinos de confronto político e social, em relação ao desgosto perante as questões ecológicas e ambientais e a realidade dos guetos. São referências do R&B e do emergente soul, que se concretizaram de tal forma que assinou um novo contrato com a Motown, no valor de um milhão de dólares (à inflação atual, seis milhões).
A este trabalho, seguiu-se “Trouble Man”, que compôs como banda sonora do filme com o mesmo nome, de Ivan Dixon. Entretanto, Gaye lançou um single, de seu nome “You’re the Man”, que só se consagraria em álbum no ano de 2019, com a mesma designação, em que foram lançados inéditos e alguns remixes. Gaye passou a viver em Los Angeles nesta fase da sua vida e, então, compôs “The World Is Rated X”, com um forte sentido social, que bebe do ritmo de “Inner City Blues”, com fragrâncias funky e da canção gospel. No ano de 1973, um novo álbum. “Let’s Get It On”, homónimo de uma das suas canções pródigas, que pauta um ritmo cada vez mais calmo e sereno, de um soul digerido com uma toada erótica aprofundada, algo inédito na sua carreira até então. No fundo, torna o funk e o soul bem mais íntimos, unindo a causa da alma com a do corpo. Amostras disto são “Come Get to This” e “You Sure Love to Ball”, com uma harmonia instrumental que, ao mesmo tempo que pacifica, une e sensualiza.
O último trabalho de duetos de Marvin Gaye seria lançado nesse mesmo ano, ao lado de Diana Ross (“Diana & Marvin”). Novamente, a dupla de compositores Ashford and Simpson, que já havia composto muitas das canções para a dupla de Gaye e de Terrell, volta a ser parte envolvida, embora ofuscada pelo brilho e pelo prestígio dos dois cantores. De volta aos palcos, Gaye teria um novo álbum — “Marvin Gaye Live!” —, em especial a interpretação de “Distant Lover”, que faz parte do álbum “Let’s Get It On”. A sua qualidade manifestava-se, assim, tanto no estúdio, como nos palcos, e, para lá de um concerto que deu para a causa da literacia africana patrocinada pela UNESCO, continuava a amealhar bastante dinheiro com as suas performances. Em 1976, “I Want You” e a sua canção homónima voltam a granjear grande fama e voltam a tocar na sexualidade como força condutora de um cantor cada vez mais movido pelo funk e por um soul leve, mas descontraído. Entretanto, faz uma tournée pela Europa, da qual vem mais um álbum: “Live at the London Palladium”, que contém um ingrediente especial vindo do estúdio: “Got to Give It Up”, uma canção de entrega à causa da dança e da música.
Em 1978, mais um disco, desta feita “Here, My Dear”, que se inspirou no divórcio do seu primeiro casamento, com Anna Gordy, a irmã do seu patrão, Berry, com quem adotou uma criança, Marvin Gaye III. É um álbum com tonalidades menos alegres e com um sentido catártico, que o despojasse dos sentimentos menos positivos. Porém, o fraco sucesso comercial aprofunda o vício de cocaína do cantor, para além dos problemas financeiros com os quais, à data, lidava. Depois de um breve período no Havai, salta para Londres e é lá que lança “In Our Lifetime” (1981), um disco com um sentido profundamente religioso, inspirado pelo Apocalipse profetizado pela Bíblia. Alguns problemas com a Motown, entretanto, nomeadamente por gravar e remasterizar material sem o seu consentimento, levam-no a desvincular-se da editora e a passar a viver na Bélgica, onde procurou acabar com o seu vício e a fomentar hábitos de vida saudáveis, nomeadamente com exercício físico e espiritual. É neste rescaldo que é a CBS Records (a atual Sony Music) a contratá-lo e a promover o lançamento de “Midnight Love” (1982), o álbum mais bem-sucedido da sua carreira. É nele que está a célebre “Sexual Healing”, que foi escrita e gravada em Oostende, a cidade onde Gaye vivia na Bélgica. Arrecadou dois Grammys com essa música, mas a eternidade ser-lhe-ia garantida para lá da sua morte.
Antes de falecer, estaria no NBA All-Star Game para entoar o hino e estaria em diversos programas televisivos mas, já após a sua Sexual Healing Tour, o seu vício voltaria a dar ares da sua desgraça e passaria a viver com os pais. Foi nessa fase em que, tentando separar os seus pais numa discussão acesa, é baleado pelo seu pai por duas ocasiões, na véspera do seu 45.º aniversário. Seria cremado e as suas cinzas depositadas no Oceano Pacífico. Caía, assim, por terra e por mar uma voz inesquecível, que conseguia ascender a melodias agudas e graves com uma facilidade ao alcance de poucos, sem esquecer a sua versatilidade e a plasticidade da sua voz. Foi endereçado musicalmente pelas canções de Ray Charles, Frank Sinatra e de Nat King Cole — que chegou a interpretar num álbum de covers — e embalado pelo seu jazz, que lhe permitiu ascender ao soul da transcendência.
Marvin Gaye sofreu profundamente na sua vida, mas não se sabe se, sem esse sofrimento, não seria a lenda que, hoje, conhecemos e reconhecemos. A sua musicalidade é um embalo para a alma e um convite à transcendência social e pessoal e dá voz à profundidade que pretendia sintonizar. A sua vida, embora curta, foi repleta de trabalho e de vivacidade, uma vida que serve de referência às gerações presentes e futuras para a formação do hip-hop, mas também para a solidificação do jazz, do soul, do R&B e até de uma falange da música eletrónica, em especial do trance, a sua vertente mais progressiva. Embora sem ascender a rei, o principado é seu para a vida, enquanto ressoa na eternidade das suas melodias, das suas palavras, da sua voz.