A falta de tempo é tanto uma realidade como uma desculpa
Agora que tenho férias, parece ainda mais complicado ter tempo. Tudo o que adiamos para a chegada desde momento cai-nos, de repente, aos pés. Na verdade, cai-nos tudo: o livro que tínhamos para ler e que, finalmente, poderá desviar-se das matérias que nos ocupam o dia-a-dia, o filme que estreou no cinema no mês passado e que deixámos escapar, o jantar tantas vezes adiado com aquele amigo. Cai-nos tudo, menos o tempo. Admito, aliás, que foi difícil arranjá-lo para escrever estas palavras.
Sobre o tempo há muito, ou muito pouco, a dizer. Num mundo onde, cada vez mais, existe o domínio do ser humano da realidade, não deixa de ter a sua ironia ocuparmos o tempo a reflectir sobre o que é o tempo, enquanto conceito tão longe da dominação humana. Não deixa, também, de ter a sua graça termos cada vez mais formas de ocupar o tempo e cada vez menos tempo. Não querendo levar a palavra à exaustão, a verdade é que este vai passando e, na correria diária, desfrutamos dele cada vez menos. Neste sentido, impõe-se a pergunta: “O que é ter tempo?”. O exercício desta resposta, ainda que pareça que não, é bastante pessoal e circunstancial. Ter tempo pode ser ler um bom livro ou estar deitado no sofá sem fazer nada, pode ser ver um programa de domingo à noite ou ir ao cinema, pode ser, apenas, andar a pé calmamente ou sair de casa para correr, pode ser estudar ou estar com um amigo. Ou, então, ter tempo é fazer isto tudo sem a pressão da rotina que acabou por ser, ela própria, a forma que encontramos de organizar e controlar o nosso tempo.
Já, repararam, também, a quantidade de tempo que perdemos a dizer “não tenho tempo”? Neste ponto, o papel das redes sociais impôs-se de forma abrupto. Eu própria, na ilusão de poder controlar o tempo, já apaguei uma ou outra ao perceber que estava, de facto, a perdê-lo. A globalização, ao encurtar o espaço, encurtou o tempo: as notícias correm ao segundo, as pessoas tornam-se mais reactivas, os acontecimentos processam-se mais rápido, transmitindo a sensação de aceleração da história e, no limite, da velocidade incontrolável a que caminhamos para o próprio fim global. Se é verdade que a tecnologia permitiu o enriquecimento da vida humana em muitos aspectos, é, igualmente, verdade que constituiu uma cedência ao tempo. Este passa por nós de tal forma acelerada que, no decorrer de cada dia, não temos consciência da sua presença: em vez de lermos um livro estamos a fazer scroll no Instagram, em vez de irmos ao teatro estamos a pôr interesse num evento do Facebook, em vez de vermos um filme estamos a ler títulos de notícias no Twitter.
Vivemos, hoje, um processo de aceleração que acredito nunca ter sido vivido antes. Vivemos com pressa e, muitas vezes, à pressa. Mesmo quando chegam as férias, e o tempo parece estender-se, caminhamos rápido e respiramos, ainda, mais rápido. Lembro-me de a minha mãe me contar o bom que era, quando surgiram os vinis, ir-se a casa de um amigo e ficar-se em torno do gira-discos, apenas, a apreciar o álbum. Hoje, abrimos o Spotify e opinamos sobre música que ouvimos enquanto estamos a apanhar o autocarro ou a escrever um e-mail e desculpamo-nos com a falta de tempo. No mesmo exercício apressado, tomamos um café com um amigo sempre atentos a um qualquer telefonema que possa surgir e desculpamo-nos com a vida profissional. A verdade é que o dia sempre teve vinte e quatro horas e a vida profissional já existia na altura em que ouvir um vinil era como congelar o tempo. O que não existia era este fenómeno que nos impede de controlá-lo, de congelá-lo e, no limite, de vivê-lo.
É, claro, exagerado atribuir toda a culpa da falta de tempo à tecnologia. Ela própria arranjou, aliás, mecanismos para não perdermos assim tanto tempo. Socorrida dos meios de comunicação, entra, muitas vezes, num jogo de simplificação de notícias e artigos (quando não aposta exclusivamente nos títulos) com o objectivo de proporcionar, a nós leitores, um texto pequeno para que tenhamos tempo para o ler até ao fim. Fornece-nos, ainda, instrumentos de registo de tudo o que vivemos, numa fotografia ou numa simples frase, para que possamos acreditar que presenciámos um dado momento enquanto prestávamos atenção a uma outra data de coisas ao mesmo tempo. A verdade é que o próprio ensino, que nos incentiva a decorar manuais e sebentas, tem culpa. A rotina, com os seus horários restritos e espaço limitado, tem culpa. As grandes cidades, com o ruído, as filas, os semáforos, as pessoas amontoadas nos passeios, têm culpa. Nós próprios, que não sabemos escapar à situação e arranjar tempo, temos culpa de não termos tempo.
A falta de tempo tornou-se tanto uma realidade como uma desculpa, num ciclo que, cada vez mais, parece ser difícil de quebrar. O problema disto? É sentirmo-nos ofegantes, é aproveitarmos menos, é desligarmo-nos do que está para lá de nós, é recusarmos o pensamento e o próprio tempo.