A fama e a perfeição de Josefa de Óbidos

por Lucas Brandão,    31 Dezembro, 2020
A fama e a perfeição de Josefa de Óbidos
“São Francisco de Assis e Santa Clara” (1647)
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Josefa de Óbidos não era portuguesa. Antes nascida em Espanha, em fevereiro de 1620 em Sevilha. No entanto, seria acarinhada e adotada por Portugal, já independente da nação vizinha, e foi aqui que faleceu, precisamente na cidade de Óbidos, que a acolheu até à sua morte, a 22 de julho de 1684. Até lá, desenvolveu um percurso esmerado e de grande talento, dando-o a conhecer nas suas criações, quase sempre inspiradas em temas bíblicos e em natureza morta. Chegaria a ser retratista da família real, pintando a rainha D. Maria Francisca Isabel de Sabóia, retrato esse que se encontra exposto no Museu Nacional dos Coches. Porém, seria já bem após a sua morte que Josefa se tornaria marcante e idolatrada, mobilizando os leilões artísticos e as suas somas milionárias, bem longe da sua devoção religiosa.

A sua ligação a Portugal começa, desde logo, nas suas raízes, já que o seu pai era de Óbidos. Era ele o pintor Baltazar Gomes Figueira, casado com a fidalga D. Catarina de Ayala Cabrera Romero. Assim, naturalmente, vai ter Portugal como grande pano de fundo da sua vida e obra. Inicialmente, em Coimbra, já que frequentou o Convento dos Eremitas Agostinhos de Santa Ana, ainda com 14 anos. Isto porque o seu pai, que procurava singrar numa carreira militar em Sevilha, decidira, ao lado da sua esposa, regressar, ao lado de Josefa e mais sete filhos. Primeiro em Coimbra e depois, em 1653, em Óbidos,, hospedando-se na Quinta da Capeleira. No entanto, esta partida não seria dada sem antes ter sido apadrinhada por Francisco de Herrera, o fundador da Escola de Sevilha, um movimento pictórico que tão seria influente no desenvolvimento da pintura no ocidente europeu. Aliás, denota-se a sua influência na própria pintura de Josefa, que também adotou o Barroco e a perfeição das suas expressões como baluarte da sua criação. Os seus predicados no domínio do cobre e da prata na representação impulsioná-la-iam a adotar diferentes formatos e suportes, do barro à gravura.

A sua formação começara já de pequena em Espanha, mas daria frutos já na sua estadia no convento, onde fez a sua primeira gravura com temas religiosos, neste caso de Santa Catarina (1647), que seria aplicado, futuramente, no Mosteiro de Santa Cruz, da mesma cidade, altar do qual o seu pai se encontrava a trabalhar. Inspira-se em acervos artísticos que remontam a pinturas flamengas, beneficiando, de igual modo, da mestria do seu pai, que lhe ajudaria nas futuras encomendas que receberia. Gomes Figueira também abriria portas para que Josefa explorasse autonomamente as obras de arte do seu tempo, com mestres seus contemporâneos, nomeadamente com ligações ao reino ou a misericórdias, que desenvolviam trabalhos em grandes templos católicos. O seu primeiro grande trabalho seria, ao lado do seu pai, a elaboração de gravuras para os novos “Estatutos da Universidade de Coimbra” (1653), numa alegoria da sabedoria. Seria a primeira de algumas encomendas de montra do seu percurso, entre as quais telas de retábulo para a Igreja de Santa Maria de Óbidos (1661), telas sobre a adoração aos pastores para o Convento de Santa Madalena, em Alcobaça (1669). telas sobre a vida de Santa Teresa para o Convento das Carmelitas Descalças de Cascais (1672), naturezas mortas para a Biblioteca Municipal Braamcamp Freire de Santarém (1676) e pinturas para a Casa da Misericórdia de Peniche (1679).

“São Francisco de Assis e Santa Clara” (1647)

É importante clarificar aspetos sociais e políticos, que ajudam a contextualizar uma presença feminina no palco da pintura, algo que pouco era usual, dado que as mulheres, mesmo na Idade Moderna, viam o seu papel restrito às lides domésticas e às do trabalho braçal, para além das tarefas associadas à maternidade. Não obstante, e mesmo num Portugal tão conturbado como era o do século XVII, ainda a haver-se com questões da sua independência, havia espaço para as manifestações artísticas, tão necessárias para dar cor e forma à História que se ia fazendo. É nesse contexto que o Siglo de Oro, em Espanha, faz brotar um barroco fortíssimo, herdando as evoluções já descodificadas por França, Áustria e Itália. Já em Portugal, era um barroco que se ia isolando, no projeto da sua independência, envergando uma grandeza quase maior que o próprio país. Porém, seria mesmo Josefa a consagrar-se como a sua força máxima, dando vida e matéria aos méritos líricos e sagrados que o Barroco fez questão de invocar.

Começou a desenvolver uma pintura limpa e perfeccionista, embora com pouca perceção e sensibilidade para questões relacionadas com a perspetiva. No entanto, a sua evolução foi-se consolidando e continuando a dar cartas, aperfeiçoando as suas naturezas mortas com tons menos vivos, mas mais adaptados à presença (ou ausência) da luz, não descurando aspetos regionais nas naturezas descritas. A olaria e a doçaria regionais eram, assim, presenças assíduas nas suas naturezas mortas, para além de frutas e outros alimentos provenientes da agricultura. De igual modo, a presença de animais não era rara, sendo acolhido por um pano de fundo que, sugerindo a estação do ano, apresentava uma paisagem inanimada desta, embora também procurasse dar aspetos vários à disposição dos elementos, imprimindo maior dinamismo e abundância. Implícitos estão significados inerentes aos valores franciscanos e aos cristãos como um todo, nomeadamente a do sacrifício e da piedade, sem esquecer a passagem do tempo e a inevitabilidade da morte.

“Natureza Morta com Doces e Barros” (1676)

No campo da plenitude do seu figurativismo, Josefa abriu o livro e compôs um universo que sempre procurou o transcendental, ao mesmo tempo que o cruzava com uma estima pelo que é natural e humano. Seriam, assim, mais de 150 as obras que criou, sempre com um poderoso ideário religioso, que sugeria essa reencarnação após a morte. Entre as obras que mais sensibilizariam e demarcariam o seu percurso, estão “São Francisco de Assis e Santa Clara” (1647, pertencente a uma coleção particular), “Natividade” (c. 1650-1660, também sob a tutela de particulares), “Santa Maria Madalena” (1650, encontra-se no Museu Nacional Machado de Castro), “Cordeiro Pascal” (c. 1660-1670, estando as suas três versões no Museu de Évora, no Walters Art Museum, nos Estados Unidos, e nos Paços dos Duques, em Guimarães), que denota a influência do prestigiado Francisco de Zurbarán, pintor com quem o seu pai havia convivido em Sevilha, “Adoração dos Pastores” (1669, presente no Museu Nacional de Arte Antiga), “Cesta com Cerejas, Queijos e Barros” (c. 1670-1680, estando com particulares).

A partir da década de 1670, outras tantas se destacam, como “São José e o Menino” (1670, fazendo parte do Museu Nacional de Arte Antiga), “Transverberação de Santa Teresa” (1672, da Igreja Matriz de Cascais, assim como “O Menino Jesus Salvador do Mundo” (1673)), “Visão de São João da Cruz” (1673, propriedade da Santa Casa da Misericórdia de Figueiró dos Vinhos), “Natureza Morta com Doces e Barros” (1676, pertencente à Biblioteca Municipal Braamcamp Freire de Santarém), “Anunciação” (1676, presente no Museu Nacional de Arte Antiga), “A Sagrada Família com São João Batista, Santa Isabel e Anjos” (1678, comprada pelo Museu da Misericórdia do Porto por 228 mil euros, num leilão da Sotheby’s), “Calvário” (1679, parte do acervo da Santa Casa da Misericórdia de Peniche) e “Maria Madalena Confortada pelos Anjos” (1679, exposta no Louvre após doação de um particular, um luso-descendente, que lhe doou após a ter adquirido por pouco menos do que 239 mil euros). Outras tantas encontram-se dispersas um pouco por todo o país, entre igrejas, museus (municipais ou não) e a tutela de privados, entre outras que continuam a ser descobertas e associadas ao seu prodígio.

“Transverberação de Santa Teresa” (1672)

Josefa de Óbidos marcou, assim, a pegada barroca portuguesa, em especial nas telas, que deambularam entre os frutos e os doces estanques e a transcendência inspirada pelos episódios bíblicos e hagiográficos. De uma elevada perfeição figurativa, Josefa herdou dos seus mestres o engenho e o génio de suscitar a elevação espiritual a partir das suas criações. Como era apanágio nesse período, respondeu a diversas encomendas, que lhe solicitaram expressões diversas, de variados momentos da vida religiosa e que a sua própria vivência conventual ajudou a captar. O seu prestígio tornou-se, assim, cada vez mais nacional, fazendo parte de uma identidade que também resulta da sua arte, seja nos seus templos ou fora deles, expostos nas galerias respetivas. Seja onde se dê o encontro com a elevação artística de Josefa de Óbidos, assiste-se a uma impressão, no feminino, de uma transcendência, de um alcance a Deus que pouco mais do que a arte consegue traduzir: na natureza viva ou na morta, Josefa elevou-se e continua em crescente e resplandecente elevação.

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