A ficção e a realidade de Portugal em ‘São Jorge’
O novo filme de Marco Martins, “São Jorge”, é uma ficção que se encontra com a realidade. Divaga pela fronteira dos elementos ficcionados e documentais, assumindo um registo próximo a “Belarmino” (1964) de Fernando Lopes. Ambos retratam um país socialmente em crise: o primeiro, o da época da ditadura, e “São Jorge”, devido às imposições da Troika e do governo de Passos Coelho.
No entanto, “São Jorge” apresenta apenas uma cena de boxe e a narrativa desenrola-se paralelamente à realidade da modalidade. Ao invés do que acontece nos Estados Unidos, o boxe português vive no amadorismo — que também está retratado em “Belarmino” —, longe dos holofotes e dos grandes poderes económicos. Após a entrada da Troika, muitos lutadores viram-se recrutados para trabalhar como membros intimidadores em empresas de cobranças de dívidas. Jorge é o espelho de muitos desses homens.
A introdução de actores não-profissionais no elenco torna a narrativa mais verosímil, ora seja na cena dos trabalhadores de fábrica, ora na sequência em que os vizinhos estão sentados à mesa na casa da família de Jorge. Numa conversa que parece ser mediada por um brilhante José Raposo (pai de Jorge), aquelas personagens de carne e osso vão desabafando sobre desemprego, dívidas e problemas sociais que afectam o bairro. Depoimentos verídicos de quem sentiu na pele as dificuldades dos anos de austeridade.
Nuno Lopes consegue que Jorge se torne real ao lado destas pessoas, o olhar infinito e o desgosto que não consegue esconder é arrepiante. Acompanhado por uma ingenuidade que o afasta do seu corpo seco, duro e gigante. Um homem que se vê encurralado pela ex-mulher, pelo pai e pelo chefe da empresa de cobrança de dívidas. Vê-se fechado numa vida repleta de carências e dívidas. Nuno Lopes demonstra que esta personagem vai além do trabalho físico a que foi obrigado, Jorge é um homem emocionalmente mais profundo do que aparenta. Uma figura desamparada que tem o filho Nelson como uma âncora que o mantém à superfície.
O bairro da Bela Vista em Setúbal e o da Jamaica, no Seixal, emprestam o cenário a um filme que vive muito de uma atmosfera sombria e escura. Jorge deambula pela noite, pelos bairros obscuros, por uma cidade conspurcada, símbolo de um país em decadência. A fotografia assemelha-se à cinematografia noir, tipicamente europeia, e leva-nos pelas deambulações de Jorge. Geralmente representado por um plano fechado e claustrofóbico, “preso” entre a sua nuca e ombros, como que estando simbolicamente a carregar o peso da vida espezinhada por uma nação economicamente falida e carente de oportunidades.
A crise é o grande antagonista, ainda assim, não é um filme político nem propagandista, evita os lugares comuns característicos do cinema português. Trata-se de um registo que dá voz aos que foram esquecidos. Marco Martins inscreve-os para a eternidade, embora “São Jorge” se cole fortemente a uma época que se quer esquecida. Seguramente um dos filmes do ano, provavelmente, o filme português do ano e tal como “Belarmino”, “São Jorge” será certamente, no futuro um clássico do cinema nacional.