A história de Patxi Andión, um espanhol com muito de português

por Lucas Brandão,    19 Dezembro, 2019
A história de Patxi Andión, um espanhol com muito de português
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O cantor e compositor espanhol Patxi Andión faleceu neste mês de dezembro de 2019, aos 72 anos, vitimado por um acidente de viação. Para a história fica como um dos músicos de intervenção de destaque do período franquista, tendo consolidado a sua carreira para lá dessa fase negra da história do seu país. Por essa contestação ficou também conhecido em Portugal, principalmente quando foi perseguido pela PIDE, a força de segurança pública do Estado Novo, numa das ocasiões em que cá atuou. No entanto, o carinho não só não foi diminuído, como multiplicado pelos portugueses, tornando-se num dos artistas espanhóis mais bem quistos por cá.

Patxi Joseba Andión González nasceu na cidade de Madrid, a 6 de outubro de 1947, embora não passasse os seus primeiros anos lá. Passou, sim, no País Basco, região de onde os pais eram oriundos, até aos sete, quando regressou à capital para estudar até aos dias de universitário. Com a sua avó, que era soprano, ganharia o gosto por cantar ao piano, algo que seria o descobrir da sua grande paixão de vida. Foi, desde cedo, traquina e gostava de desafiar o status quo das hierarquias do colégio onde estudou. As suas raízes, embora humildes (o seu pai havia lutado na Guerra Civil Espanhola ao lado dos republicanos), seriam uma constante na sua carreira, chegando a lançar discos apenas com músicas escritas em euskara, i.e. em basco.

Numa fase em que a ditadura espanhola se solidificava, personificada pela figura do general Francisco Franco, Andón envolveu-se em atividades de contestação ao regime com organizações clandestinas – roubava livros, que dizia necessitar tanto como pão -, acabando por se exilar em Paris pouco tempo depois; onde, igualmente, conheceu uma das suas grandes inspirações musicais, o cantor Jacques Brel. Aqui, imbuiu-se do espírito do maio de 1968, da revolta estudantil que despoletou na cidade e um pouco por todo o país daí em diante, e começou a escrever música sobre as suas causas, as suas preocupações, as suas urgências, isto após algumas experiências menos conseguidas em grupo. De si para a sociedade, esperando que a sociedade o acompanhasse na provocação e no desafio. A sua música ressoava, assim, com uma pureza pouco habitual, com a expressão das suas aspirações e frustrações, com pujança de guerreiro mas também com uma ironia suficientemente mordaz e irreverente.

A primeira vez que esteve, em trabalho, por Portugal, foi logo no ano de 1969, ainda Salazar era vivo, embora fosse Marcello Caetano o chefe de governo. O programa de Raul Solnado, Carlos Cruz e de Fialho Gouveia, o “Zip-Zip”, um dos programas mais célebres do final dos anos 60 da RTP, acolheu uma destas vindas; já que antes tinha feito a primeira parte de um concerto do seu compatriota Manolo Díaz. Não chegaria a terminar este, porque a PIDE não o deixaria, obrigando-o a sair do país em doze horas. Quando veio ao “Zip-Zip”, seria mesmo conduzido pelos oficiais até à fronteira de Badajoz. Andón já tinha lançado um LP – “Retratos” (1969) – e começava a tornar-se conhecido na rádio portuguesa, já num período de maior relaxamento do regime. Aliás, José Carlos Ary dos Santos, o fadista e também compositor, procurou traduzir algumas das suas músicas, dando-lhes a voz de Tonicha (o EP “4 Canções de Patxi Andón”, de 1972). No ano seguinte, era capa da revista “Mundo da Canção”, onde deu voz a algumas coisas que o povo português, em geral, se havia esquecido: de ser irónico, de ser impaciente, de perguntar os quês e porquês do mundo. Fez amizade, claro está, com Zeca Afonso, que conheceu quando veio a Portugal, ao “Zip-Zip”, e que homenagearia por diversas vezes, quando interpretou alguns dos seus temas e subiu ao palco para, exclusivamente, o cantar. Revia-se na sua abordagem de protesto e sentia-se a sintonia nos apelos à liberdade, apelos que seriam observados – ou escutados – de perto pela PIDE.

À data de 24 de março de 1974, um mês antes da eclosão da Revolução de Abril, e num dia em que encheu o Coliseu dos Recreios, já havia sido forçado a abandonar o país por duas vezes pela PIDE, nas duas vezes que tinha ido para atuar, sem qualquer explicação dada pelos seus oficiais. A resposta de quem enchia o Coliseu era mais que suficiente para mostrar a admiração e a simpatia com a qual Andión era recebido em Portugal. Foi uma ligação que perdurou pelo século XX e pelo XXI, tendo gravado “Cuatro Dias de Mayo” (2011, o seu primeiro álbum ao vivo, resultante duma passagem pelo Teatro Académico Gil Vicente, em Coimbra), para além de uma crescente proximidade ao fado, ao lado de nomes como Ana Moura (com ela, gravou “Vaga, no azul amplo solta”, advindo de um poema de Fernando Pessoa, constando no disco “La Hora Lobicán”) ou Ricardo Ribeiro. Aliás, reconhecia Portugal como um país que o compreendia, enquanto ia polindo o seu discurso e reduzindo a sua assertividade lírica. Não obstante, e bem antes, foi travando conhecimento com José Mário Branco, outro intervencionista por excelência, Fausto ou António dos Santos (ganhou o hábito de tocar a sua balada “Minh’alma de Amor Sedenta”), dois dos intérpretes mais portugueses desses anos 1970 e 1980. Os últimos concertos dados em Portugal ocorreriam em setembro, por vários pontos do país, celebrando os cinquenta anos de carreira do espanhol, com o último a ocorrer no dia 22, na Casa da Música, no Porto; numa altura em que já havia sido condecorado com a Medalha de Honra da Sociedade Portuguesa de Autores. Mimava, assim, os portugueses sempre que cá vinha, com o privilégio de interpretar músicas em pleno português.

Enquanto esta relação com Portugal se mantinha, tornou-se cada vez mais profícuo no seu país, lançando alguns discos de grande destaque, como “A Donde El Água” (1973), “Cómo El Viento Del Norte” (1974), “Amor Primeiro” (1983) ou “El Balcón Abierto” (1985), para além de eventuais compilações que foi realizando. Destes discos, ficam para a memória “Si Yo Fuera Mujer”, “Puedo Inventar”, “Una, Dos y Trés” “La Casa se queda Sola”, “Tiempo, Tiempo” e “Porque me duele la voz” como músicas de referência do seu repertório. A sua carreira conheceu algumas metamorfoses, nomeadamente um tom mais pessoal e um tanto ou quanto comercial, que surpreendeu os círculos da intelectualidade de esquerda de Espanha. Nunca os desiludiu no sentido em que também nunca descurou por completo o rasgo crítico e social e, mesmo na música mais voltada para si, mantinha o cuidado poético fundido com a rouquidão da sua voz, habituada na toada mais irascível do intervencionismo. Também no cinema e no teatro passou a trabalhar, enquanto a sua carreira musical se desdobrava nestas décadas de 1970 e de 1980. Quando esta fase de grande criatividade arrefeceu, dedicou-se ao ensino, aproveitando a sua formação em jornalismo e sociologia, dando aulas de Comunicação Audiovisual na Universidad de Castilla – La Mancha, embora voltasse à música ainda no final do século XX, em 1998, com “Nadie”, e com o primeiro álbum de originais em 24 anos, “Porvenir” (2009). O último dos discos de originais foi lançado já em 2019, com “La Hora Lobicán”.

No rescaldo da sua carreira, fica uma nota de grande nostalgia para com as preocupações sociais que procurou, desde cedo, versar nas suas composições, algo que nunca perdeu do seu cunho musical. Era algo que refletia, perante a massificação do consumo, que lamentava, para além das crescentes máscaras que se foram erguendo e que impediam o estabelecimento de relações humanas genuínas e diretas. A hora lobican na forma de expressão de algo impercetível, como a confusão entre um lobo ou um cão no anoitecer ou amanhecer (é esse o seu significado para as comunidades galegas e asturianas), mas que pode indiciar, com base na leitura do cantor, como os grandes desafios da atualidade, ainda por serem devidamente percebidos. A sua maturidade musical levou-o a compor de uma forma diferente, mais refinada e culta, sem o radicalismo e a irreverência de outrora, embora as causas e os valores fossem os mesmos. Aliás, a música foi sempre aquilo que o conquistou. Pela liberdade, apenas sujeita à vontade de cada um, desenhada como uma universalidade com vozes e significados sem fim.

Patxi Andón partiu com um coração que, embora dedicado a Espanha e às suas raízes bascas, não pode ser olhado com indiferença para Portugal. Aqui ganhou uma segunda casa, uma segunda família. Granjeou o carinho e a fama, procurando apresentar o seu trabalho com regularidade. Não esqueceu os amigos que fez, homenageando-os após morrerem e colaborando com outros que ia conhecendo. Por mais que a sua presença fosse um incómodo para um regime inflexível e ditatorial, a resposta cabal que o Coliseu dos Recreios deu foi uma amostra da mobilização da sua agridoce voz e do seu espírito de combate. Em Portugal, Andón sentiu que era ouvido, compreendido, espelhado. É assim que é recordado.

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