A idade de Jesus

por Frederico Lourenço,    10 Dezembro, 2018
A idade de Jesus
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A idade de Jesus – e outro problema em João 8:57

Começo por avisar que a representação de Jesus que aqui veem não diz respeito a João 8:57, mas sim a João 20:17 («noli me tangere»).

Trata-se de um quadro atribuído a dois pintores seiscentistas (Abraham Jannsens e Jan Wildens), de que gosto especialmente por causa da maneira como a pintura consegue trazer vegetais (nabos!) para a narrativa bíblica, dando um cunho literal à palavra «hortulanus» (hortelão) da Vulgata, quando a palavra κηπουρός do texto grego nos faria pensar mais num jardineiro que se ocupa de flores.

Que idade parece ter Jesus neste quadro flamengo do século XVII? Como o imaginavam os autores desta representação?

O Cristo deste quadro parece aos nossos olhos relativamente jovem, mas, na Antiguidade Tardia, havia cristãos que viam em Jesus um «maduro», como diríamos hoje, que morreu com quase cinquenta anos (ver a p. 26 da minha tradução dos Evangelhos para as referências).

Ora, a base para a suposição de que Jesus morrera com quarenta e tal anos está em João 8:57:

«Disseram-lhe então os judeus: “ainda não tens cinquenta anos e viste Abraão?”»

Independentemente do problema de interpretação que «ainda não tens cinquenta anos» suscita, há outro problema neste versículo que as pessoas normalmente ignoram.

João escreveu «viste Abraão» (em grego, Ἀβρααμ ἑώρακας) ou «Abraão viu-te» (em grego, Ἀβρααμ ἑώρακεν σε)?

É que ambas as versões estão documentadas em manuscritos (mesmo nos mais antigos) do Novo Testamento.

Cada versão da frase estabelece, a meu ver, uma hierarquia diferente entre Jesus e Abraão.

Se aceitarmos que João escreveu «Abraão viu-te», isso implicaria a ideia de Jesus como objecto de percepção por parte de Abraão – de um Jesus absolutamente real até na boca dos seus adversários judaicos. «Abraão viu-te» torna Abraão e Jesus igualmente reais.

Por outro lado, a frase «viste Abraão» (a canónica, pois a Vulgata diz-nos «Abraham vidisti») aceita Abraão como real, como é óbvio, mas, na boca destes adversários judaicos, sonega a Jesus um estatuto ao mesmo nível do de Abraão.

Assim, «viste Abraão» é talvez mais verosímil na boca dos judeus que no Evangelho de João se opõem a Jesus do que «Abraão viu-te».

No entanto, a formulação da frase «Abraão viu-te» está registada num papiro do século III (actualmente na Biblioteca Vaticana) e é a lição original do Codex Sinaiticus (o mais antigo manuscrito completo do Novo Testamento, do século IV).

Se é essa, de facto, a formulação original, a frase muda completamente de sentido.

Mais um pequeno exemplo, em suma, de uma realidade para a qual nunca é de mais chamar a atenção: não há texto mais fascinante do que o texto dos quatros Evangelhos, em que o cristianismo se baseia; mas, ao mesmo tempo, é um texto completamente incerto. O texto que lemos nas nossas Bíblias e que ouvimos na igreja é apenas uma reconstituição possível de um texto que, em rigor, é irreconstituível.

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