“A Imortalidade”, de Milan Kundera: o receio de desaparecer sem deixar marca no mundo

por José Moreira,    31 Dezembro, 2022
“A Imortalidade”, de Milan Kundera: o receio de desaparecer sem deixar marca no mundo
Capa de “A Imortalidade”, de Milan Kundera (ed. Dom Quixote)

Milan Kundera, eterno candidato ao Nobel da Literatura, nasceu em Brno na antiga Checoslováquia em 1929 e perdeu a cidadania em 1979 ao incompatibilizar-se com o Partido Comunista local. Radicado em França desde 1975, e vendo-se temporariamente apátrida, naturaliza-se Francês em 1981. Esta ruptura forçada com a sua identidade cultural levou Kundera a identificar-se posteriormente como autor de literatura Francesa, escrevendo mesmo em Francês e traduzindo os seus próprios livros para o Checo (aconteceu com esta obra, publicada em Francês em 1990). Mais recentemente viu-se vítima de um escândalo quase em simultâneo com a sua reconciliação com a República Checa em 2009, supostamente, teria denunciado um desertor ao partido nos anos 50, esta investigação carece de provas ou relatos conclusivos.

Partindo de “A Insustentável Leveza do Ser”, a escrita de Kundera transita gradualmente de um teor conceptual mais político para uma linha de pensamento cada vez mais filosófica, com influência de Franz Kafka, Diderot e Heidegger, entre outros.

“Não há dúvida que houve no mundo incomparavelmente menos gestos do que indivíduos. E isto leva-nos a uma conclusão chocante: um gesto é mais individual do que um indivíduo. Para o dizermos sob a forma de um provérbio: muita gente, poucos gestos.”

“A Imortalidade”, de Milan Kundera

A Imortalidade é uma crítica social em forma de romance, onde o conceito da imortalidade é explorado através do legado que cada personagem constrói, para si e para os que o rodeiam. As sete partes que compõe este livro descrevem as dinâmicas de Agnès, da sua irmã Laura e do seu marido Paul. Este trio engloba em si o medo da morte, o medo da vida, a consciência política ou social do seu tempo. Esta personagens fogem a qualquer convenção literária, desdobrando-se em múltiplas facetas ao longo da história. 

Agnès é inicialmente a personagem central e vive num constante receio e ansiedade sobre a sua importância na sua própria narrativa, numa ambiguidade sentimental complexa e profunda que foi em boa parte espoletada pela morte do pai, figura central na criação da sua identidade e que impacta todas as suas relações, em particular com o marido e a irmã. É a personagem com a relação mais complexa com a morte, deixando-a interferir com a sua vida de forma recorrente. “Agnès diz: Talvez a morte tenha de existir. Mas não teria sido possível inventá-la de maneira diferente? Por que será necessário deixarmos atrás de nós uns despojos que têm de ser enterrados ou atirados ao fogo? Tudo isso é abominável!”

A irmã Laura representa uma vertente emocional mais instável, com propensão para as relações tóxicas e depressões profundas que roçam o limiar do pensamento suicida (aqui como grito de desespero e chamada por atenção). Está quase sempre presente a sua incapacidade em estabelecer ligações profundas e duradouras, como a própria afirma: “Tive muitos homens na minha vida, nenhum deles sabe nada de mim, eu já não sei nada de nenhum deles e pergunto a mim própria: para que terei vivido se ninguém guardar o menor sinal de mim? Que ficou da minha vida?”. Vive desesperadamente em busca de atenção da irmã, de Paul e dos seus amantes.

Paul, marido de Agnès, assume um papel de mediador entre as diferentes personagens e personifica, em parte, a própria experiência de Kundera, que utiliza o personagem para efectuar críticas de maior teor político. Até desmonta o modus operandi dos sistemas totalitários num interessante confronto de ideias entre Paul e “Urso”, o seu director de programas, que diz a Paul: “Se a grande cultura está pronta, tu também estás pronto, e juntamente contigo, as tuas ideias paradoxais, porque o paradoxo enquanto tal releva da grande cultura e não do chilrear das crianças. Fazes-me pensar nesses jovens que outrora aderiam aos movimentos nazis ou comunistas, não pelo desejo de fazer mal nem por oportunismo, mas por excesso de inteligência. A verdade é que nada exige do pensamento um esforço maior do que a justificação do não-pensamento. Pude comprová-lo com os meus próprios olhos, depois da guerra, quando os intelectuais e os artistas entravam em rebanho no partido comunista que, a seguir, com grande prazer, os liquidava sistematicamente a todos. Tu estás a fazer exactamente a mesma coisa. És o brilhante aliado dos teus próprios coveiros.”

Refere também como as ideologias se diluem ao longo do tempo, dando o exemplo: “na Rússia, os marxistas perseguidos formavam pequenos círculos clandestinos onde se estudava em comum o Manifesto de Marx; simplificaram o conteúdo dessa ideologia para a difundirem noutros círculos cujos membros, simplificando por sua vez a simplificação do simples, a transmitiram e propagaram até ao momento em que o marxismo, conhecido e poderoso em todo o planeta, se viu reduzido a uma colecção de seis ou sete palavras de ordem tão fracamente articuladas que dificilmente podem ser consideradas como uma ideologia.” Mas, de forma optimista, o narrador conclui que “Todas as ideologias foram vencidas: os seus dogmas acabaram por ser desmascarados como ilusões e as pessoas deixaram de os levar a sério. Por exemplo, os comunistas julgaram que a evolução do capitalismo empobreceria cada vez mais o proletariado: quando um dia descobriram que todos os operários da Europa iam de carro para o trabalho, sentiram vontade de gritar que a realidade fizera batota. A realidade era mais forte do que a ideologia.” É importante relembrar que o autor disseca com conhecimento de causa todas estas experiências políticas e culturais.

O livro “A Imortalidade” é essencialmente sobre pessoas e o receio de desaparecer sem deixar marca no mundo. Milan Kundera consegue, fazendo bom uso das suas experiências e influências académicas ou intelectuais (estudou piano e composição musical, literatura e estética), criar um universo de confrontos filosóficos, com uma diversidade de pensamento brilhante e de profundidade emocional ímpar. Encontramos várias sequências narrativas sustentadas através do uso factual e ficcionado de referências históricas como Goethe, Napoleão, Hemingway, Rubens, Salvador Dali ou Beethoven, entre outros. Analisa o desejo de imortalidade de uma forma arrebatadora, que nos deixa facilmente sem palavras para digerir os desenvolvimentos da narrativa que definem e demonstram este desejo, de formas diferentes em cada personagem. É claramente um livro para ler com espírito aberto e vontade de pensar na vida e no ser, temas recorrentes da obra deste autor de culto à margem do pensamento e dos cânones literários.

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