A importância da representatividade
Ao longo da minha curta vida sempre me confrontei com a minha própria incapacidade de autodefinição. A constante busca pelo “encaixe” genérico atormentou-me silenciosamente, manchando uma infância feliz e rodeada de pessoas. Eu própria tinha tendência a afastar os meus pares por não me considerar digna deles; por outras palavras, era diferente e, como tal, inferior.
Rapidamente aprendi a encontrar lugares onde me delimitar, particularmente numa espécie de limbo identitário onde reina a insegurança. Foi o ajuste a esse intermédio que, por via das dúvidas, me validou, apaziguando as questões que teimosamente saltitavam na minha mente. No entanto, a solidão permaneceu e trancou-me num fosso inabitado e escuro. A memória que me resta desses tempos está coberta de um leve nevoeiro que, ainda hoje, me impede de olhar para a vida que tinha objetivamente. Na altura tudo se resumia a uma profunda tristeza e autoisolamento; estava sozinha naquele limbo, ou pelo menos era o que me parecia.
Foi somente no fim do meu nono ano que este véu se começou a levantar: havia lido, pela primeira vez, a obra prima de Virginia Woolf, Mrs Dalloway. Quando comecei a ler o livro não ia, de todo, com intenções de me nele encontrar, mas, para minha surpresa, os contratempos de uma adolescente Clarissa Dalloway, secretamente apaixonada por uma amiga de infância, caíram que nem uma bomba e ressoaram-se em mim, pondo um fim a anos de isolamento existencial; finalmente tinha encontrado alguém que, mesmo de forma ficcional, se assemelhava à minha pessoa.
Não é ousadia admitir que Mrs Dalloway se trata de um clássico da literatura. Porém, admito a bravura daqueles que o conseguem descrever como um clássico Queer. Este é só mais um exemplo de um grande livro que, mesmo explorando explicitamente o problema da sexualidade e identidade de género, foi sendo apropriado por uma comunidade literária/cultural elitista e, maioritariamente, heteronormativa que, consciente ou não das suas ações, apagou da mente coletiva e, consequentemente, da História, a vertente homoerótica da obra. Aliás, vim mais tarde a descobrir que não foi o único livro de Woolf a ser perigosamente mal interpretado: as conotações homossexuais e não binárias em Orlando: a biography foram retiradas de contexto, de modo a que a comunidade tirasse proveito da obra de arte sem as implicações que esta trazia ao de cima. Famosamente, Oscar Wilde, Walt Whitman, Emily Dickinson e James Baldwin (entre muitos outros) foram vítimas do mesmo infortúnio, assim como as suas obras. A obliteração forçada da representatividade Queer ao longo dos tempos causou um efeito bola de neve onde a opressão e a discriminação extrema ganharam força.
Frequentemente me pergunto o que teria acontecido se estas obras tivessem permanecido verdadeiras à sua forma original e reconhecidas enquanto textos LGBT+: teria a sociedade evoluído de forma diferente? Será que seríamos todos mais tolerantes? Tudo isto não passa de uma incógnita. A única certeza que se sobrepôs foi que, deveras, eu própria teria tido uma infância menos solitária e inundada de questões às quais eu não tinha respostas, e como eu existiriam muitos jovens que teriam necessitado da confirmação de que a invisibilidade que os marcava não passava de uma ilusão e que, tal como o verdadeiro recheio destes livros e histórias, estavam só escondidos em plena luz do dia.
Nos dias que correm este argumento parece ser obsoleto, já que a representatividade Queer está no seu apogeu. Contudo, cresce agora um estigma, muitas vezes associado à questão do politicamente correto, que torna este tema alvo de acesas discussões, muitas vezes extremadas.
Quando me perguntam se a representatividade assídua que se verifica no conteúdo televisivo e no mundo do entretenimento é mesmo autêntica ou se se trata, simplesmente, de uma forma de marketing, eu tendo a ponderar cuidadosamente a resposta que dou. Já ruminei muito sobre o assunto e concluo sempre que existem, sem qualquer sombra de dúvida, as duas vertentes. Se por um lado há genuíno interesse pela representatividade e pela narração de histórias Queer, por outro, existe uma estratégia publicitária subjacente a este interesse generalizado. Todavia, esta realidade não me incomoda tanto como talvez deveria incomodar. A verdade é que, medindo os prós e os contras, parece-me que ganha a vontade de fazer passar a mensagem ao mundo e à comunidade de que os dias da clandestinidade LGBT+ acabaram e está na hora de fazer jus aos séculos de História esquecidos ou aniquilados. O medo que nos engoliu durante anos é agora exterminado todos os dias e o orgulho, aceitação e celebração da nossa própria História, por muito apagada e fragmentada que permaneça, avoluma, culminando nas comemorações do orgulho Gay que nos relembram o que fomos e no que nos podemos tornar.
Crónica de Cláudia Riscado
Cláudia Riscado frequenta a faculdade de letras da Universidade de Lisboa e encontra-se no segundo ano do curso de Artes e Humanidades.