A Julieta de Almodóvar
“Eu eduquei-te na mesma liberdade em que os meus pais me educaram (…). Nunca te quis falar disso, eras muito pequena para que te perturbasse com a amargura de minha culpa. Mesmo assim, percebeste-a (…) e, apesar do meu silêncio, acabei por te transmitir isso como um vírus”
Almodóvar e as mulheres.
A história desta relação confunde-se com a história do cinema. Leva já frutuosas décadas e granjeou-lhe um lugar de destaque, pela sensibilidade e coragem com que aborda o universo feminino, em toda a sua complexidade, beleza e fatalismo.
Conhecido por quebrar tabus e abordar temáticas essenciais, muito antes de serem moda, como as questões de género, neste filme o espanhol opta pela sobriedade e pela discrição, apontando subtilmente indícios, quase presságios, em detrimento de explicações grandiloquentes e demonstrações detalhadas de factos e sentimentos. O sussurro toma o lugar do murro no estômago.
Tal como nos velhos clássicos gregos, a acção começa in media res e todo o filme é uma detalhada analepse, em que retalhos do passado são descritos pela protagonista, na procura desesperada de recuperar um tempo que julga irremediavelmente perdido.
Encontramos Julieta (Emma Suárez – no presente – e Adriana Ugarte – no passado, duas interpretações de antologia) em casa, espaço estranhamente impessoal, repleta de tons brancos e cores mortas, algo raro nos cenários do espanhol. Prestes a mudar-se para Portugal, juntamente com o seu companheiro, malas prontas, escolhe livros para levar consigo.
Na decorrência de encontro fortuito com uma amiga de infância da filha, é-lhe revelado (a ela e a nós) que a filha, Antía Feijóo, desconhecida do namorado, mora na Suiça, casada e com três filhos.
Sucumbindo ao peso da ausência e da saudade, num ápice cancela a viagem, termina a sua relação e regressa ao prédio onde acompanhou a infância e adolescência da filha, subitamente esperançada num regresso, notícias, uma prova de vida.
Numa cena simbólica, junta os pedaços de uma foto de abraços sorridentes e felizes. Um momento apenas, como em todos os instantâneos familiares. Também ela se reconstrói, vertendo as recordações numa carta à filha, em que recupera a sua versão do passado e, com ela, a culpa, cujo peso insuportável a impede de avançar.
O inesperado reencontro consigo própria e com os laços indissolúveis da maternidade, reacende a saudade e a fé, 12 anos depois da dura e abrupta partida da filha, por motivações que nunca conseguiu descortinar (embora as pressinta).
Já em plena retrospectiva, deparámo-nos com uma excelente professora de estudos clássicos, activa, cativante. Ironicamente a sua própria vida é o exemplo vivo da quase completa inércia perante a sucessão dos acontecimentos, o completo inverso dos heróis que tão bem conhece.
Poderíamos pensar numa alusão de Almodóvar à Julieta de Shakespeare, mas também não é o caso.
A Julieta de Almodóvar afoga-se na culpa e no remorso e a eles se entrega, incapaz da força necessária para tentar que a vontade e o amor triunfem sobre a circunstância e o Destino.
Também a luta contra o Fado está totalmente ausente de toda a trama, embora alguns resquícios da estrutura trágica permaneçam na excelente personagem Marian, empregada de Xoan, marido de Julieta.
Papel curto mas marcante de uma das actrizes-fétiche de Almodóvar – Rossy de Palma – ao mesmo tempo que concentra em si o contraponto cómico para todo o dramatismo do filme, Marian assume também o papel outrora atribuído ao coro da tragédia, anunciando presságios, distúrbios na frágil placidez da vida em comum de um casal onde a comunicação não era abundante. Apenas no final se percebe como acaba por ser um verdadeiro deus-ex-machina, que vai alterar definitivamente toda a dinâmica familiar.
A mudança presente neste filme de Almodóvar, em termos de construção das personagens e do enredo, em muito se fica a dever à fidelidade e humildade que demonstra perante a obra Runway, da nobel da literatura Alice Munro, em especial aos três contos que têm como protagonista Juliet – “Chance”, “Soon” e “Silence” – cada um deles descrevendo uma fase específica da sua vida: a juventude como professora, o regresso à casa dos pais, a maturidade e a dor de estar privada da presença da filha.
Assim que os leu pela primeira vez, Almodóvar comprou os direitos dos mesmos e planeou um filme nos locais descritos por Munro, em pleno Canada. Em entrevista ao El País, já este ano, revelava:
“Apesar de ter uma protagonista comum, os contos não eram consecutivos. Não era simples dar-lhes unidade, mas fascinaram-me tanto que comecei a escrever. A minha primeira ideia era fazer um filme em inglês e com atrizes de língua inglesa; queria rodar no Canadá, nos lugares de que falava Munro. Estava decidido. Durante a promoção de A Pele que Habito, fomos procurar locais em Vancouver e começaram os problemas. Fiquei arrasado. As paisagens reais eram tão desoladoras e tristes que vi claramente que não podia rodar ali, nem mesmo por alguns meses. Era muito deprimente. Então fomos ao Estado de Nova York em busca de uma mudança geográfica. Acabei o argumento e traduzira-no para o inglês com uma idiossincrasia americana. Também não me convencia. Por isso deixei numa gaveta e esqueci. Até que, há dois anos, Lola [García, sua ajudante pessoal] e Bárbara [Peiró, encarregada do departamento internacional de sua produtora] sugeriram-me que retomasse o projecto mas com uma nuance: que a história fosse em Espanha.”
Para não perturbar a descoberta da história, não nos alongaremos na análise comparativa, mas as semelhanças são inúmeras. O seu cinema adaptou-se na perfeição à escrita de Munro e não o inverso, algo inesperado para um criativo original como Almodóvar, mas que aqui resulta.
A fotografia é muito bela, com uma perfeita combinação de cores e planos de belo efeito, graças ao trabalho de Jean Claude Laurrieu. Alberto Iglesias, companheiro de longos anos, tece o tapete sonoro por onde desliza a acção, respeitando o fôlego das cenas, os silêncios e os ritmos.
O fascínio do filme reside precisamente no modo como a acção decorre sem grandes ânsias ou sobressaltos, centrada num aturado trabalho de composição de todo elenco e numa excepcional direcção de actores, em que a expressividade das feições e dos gestos habilmente se sobrepõe à verborreia que povoa tanto do cinema que hoje nos chega.
A contenção e subtileza que o realizador exibe nesta sua nova obra é exemplar e dela resulta um filme de emoções secas de lágrimas, centrado no âmago do desespero e do ressentimento, na rendição à evidência dos sentimentos maiores, que unem e destroem laços a seu tempo. Destacam-se as mulheres, as mães e as filhas, na sua essência, sem os artifícios do desenlace-surpresa, da música dramática na cena estratégica, da choradeira quase escatológica, de tão contagiante e perturbadora que se torna.
Almodóvar mudou de roupa, mas continua vintage.
Espanha escolheu Julieta como representante para os Óscares que se avizinham.
A ver, sem dúvida.