A justiça tem paywall
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Estava no meu terceiro ano numa grande sociedade de advogados em Lisboa quando me pediram que fizesse, pela primeira vez, um requerimento à Segurança Social pedindo apoio judiciário. A candidata era uma empresa insolvente com sede num paraíso fiscal nas Caraíbas que, anualmente, pagava centenas de milhares de euros ao escritório que me empregava.
Cumpri diligentemente a tarefa. Alguns meses depois, o pedido foi aceite: a minha cliente ficou isenta de pagar ao Estado quaisquer taxas de justiça e encargos num processo judicial que pretendíamos iniciar perante os tribunais portugueses — uma das modalidades de apoio judiciário previstas na lei.
Não consigo traçar com segurança a fronteira que distingue a inocência que advém da falta de experiência da inércia que advém da falta de coragem, mas sei que, ainda hoje, quatro anos depois, sinto algum desconforto por não me ter recusado a processar aquele requerimento que, apesar de legalmente admissível, resulta, na prática, numa evidente injustiça.
Comecei então a prestar mais atenção ao sistema público de proteção jurídica. Será que funciona tão perfeitamente que tutela e ampara toda a gente que não tem acesso ao direito e aos tribunais, ao ponto de poder dispensar tranquilamente o dinheiro de uma empresa que, ainda que insolvente, consegue pagar avultados honorários? Ou seria este um exemplo de um sistema com falhas graves?
A Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 20.º, n.º 1, dispõe: “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência económica.”
A forma encontrada para concretizar este desígnio constitucional é o Sistema de Acesso ao Direito e aos Tribunais (SADT), que prevê diferentes modalidades de apoio jurídico para quem está em situação de insuficiência económica — desde a consulta jurídica gratuita à dispensa ou pagamento faseado de taxa de justiça e encargos processuais, que pode ou não ser cumulada com a nomeação de advogado oficioso. Ao Instituto da Segurança Social cabe verificar a situação de insuficiência económica dos candidatos e, caso seja requerido um advogado, cabe à Ordem dos Advogados indicar um dos 13.500 inscritos, consoante a sua área de prática.
A cada três anos, os órgãos sociais da Ordem dos Advogados vão a eleições e, ciclicamente, o estado ruinoso do SADT é tema central: os advogados, tendo-se inscrito voluntariamente, são mal e tardiamente remunerados; os beneficiários deste apoio apresentam várias queixas; o SADT exclui muita gente de baixos rendimentos. A tudo isto, acresce o risco de fraude e de soluções materialmente injustas, como aquela que denunciei nos primeiros parágrafos.
Como pouco ou nada se alterou nas últimas duas décadas, o pleno direito de acesso à justiça é cada vez mais um privilégio reservado aos poucos que têm dinheiro para pagar a bons advogados ou aos em ainda menor número que têm acesso a um bom e disponível advogado oficioso.
Somos iguais perante a lei, mas desiguais no acesso à justiça.
Na omissão ou insuficiência do serviço público de proteção jurídica, o pleno acesso à justiça resta condicionado por uma paywall — os preços dos honorários praticados pelos advogados no mercado livre — que impede a vasta maioria de aceder a todos os seus direitos legalmente protegidos.
Por esta razão, a discussão sobre as diferentes vias para a concretização do artigo 20.º, n.º 1 da CRP – seja reformando o Sistema de Acesso ao Direito e aos Tribunais ou encontrando um modelo alternativo – não pode estar fechada na bolha dos advogados e outros profissionais forenses.
O direito de acesso à justiça e o seu aperfeiçoamento são tão relevantes para a sociedade civil como qualquer assunto relativo à saúde ou à educação, que têm recebido muito mais atenção generalizada. Talvez a opinião pública possa também temperar os interesses corporativistas dos advogados que têm viciado a discussão: falta, em particular, ouvir mais de quem beneficia e de quem é excluído do atual sistema.
Nota de transparência: Desde 2021, Leonor Caldeira presta serviços de consultoria jurídica ao Fumaça no âmbito da investigação jornalística em curso sobre brutalidade policial, discriminação na justiça e o que significa ser polícia em Portugal.