A Lei de Saúde Mental vai ser alterada. Algumas preocupações e pontos positivos
Para a nova crónica escolhi um tema que é mais específico e talvez por isso mais pesado de expor num espaço como este. A Lei de Saúde Mental vai ser alterada – esta é a Lei que permite que em casos excecionais, pessoas que sofram de doenças psiquiátricas (até aqui anomalias psíquicas graves) sejam privadas de Liberdade para serem tratadas contra a sua vontade. Falei acerca desta Lei e da forma como serve para proteger os doentes na minha 6.ª crónica para este espaço.
A nova versão desta Lei já foi aprovada na Assembleia da República, na generalidade, ficando agora a faltar a aprovação na especialidade. Dessa forma, deixo aquela que é a visão que tenho da Proposta de Lei, levantando as questões que mais me preocupam e deixando também alguns elogios à visão que o documento pretende ter.
Para quem necessite de consultar a Lei 36/98, bem como para a Proposta.
Opinião em relação à nova Proposta de Lei de Saúde Mental
(Proposta de Lei n.º 24/XV/1.ª)
Em análise à Proposta de Lei n.º 24/XV/1.ª, penso que há algumas questões que é relevante levantar. Entende-se a intenção de alterar a Lei e depreende-se, pelo seu texto, que esta pretende ser ainda menos coerciva do que a sua antecessora, a Lei 36/98. Ainda assim, várias questões merecem esclarecimento e eventual alteração, para que não se corra o risco de que venham a resultar, na prática, naquilo que é uma aplicabilidade contrária ao espírito do Legislador.
Por forma a tornar o documento de mais fácil leitura, vou resumir, em pontos simples, as questões que considero mais pertinentes:
- A utilização do termo “doença mental” abre caminho a que qualquer doença listada na Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial de Saúde possa ser utilizada como critério para privar alguém da sua Liberdade, obrigando-a a cumprir tratamento. É preocupante que não esteja o conceito de gravidade associado a esta redefinição do texto legal – que anteriormente utilizava a terminologia “anomalia psíquica grave”, permitindo tanto uma abordagem médica quanto jurídica ao termo. Isto poderá ter várias implicações:
- O espírito de Legislador pode ser entendido como mais permissivo em termos dos casos a carecer de internamento involuntário;
- Poderá haver uma maior tendência, eventualmente por receio de que esse passe a ser o modus operandi adequado, ao internamento involuntário de pessoas com perturbações de personalidade ou com qualquer tipo de dependências – listadas como doenças mentais na Classificação Internacional de Doenças;
- No limite, de uma forma puramente académica, a substituição do termo “anomalia psíquica grave” por “doença mental”, torna o juiz mais dependente na sua decisão, que em termos práticos se poderá dizer que terá que assentar mais ainda na avaliação clínico-psiquiátrica elaborada pelo médico psiquiatra: se anomalia psíquica é um conceito de limite entre o Direito e a Medicina, o mesmo não se poderá dizer da doença mental, que requer formação médica para diagnosticar/identificar;
Sugestão: repor “anomalia psíquica grave” ou, substituindo o termo, alterá-lo para “doença mental grave”;
- A alínea g) do art.º 7.º menciona, entre outros direitos dos doentes, a permanência a céu aberto. A inclusão desta preocupação apenas nesta parte do texto de Lei torna-a absolutamente irrelevante quando a privação de Liberdade entra em vigor. Em Portugal, para os doentes internados compulsivamente, não há obrigatoriedade de condições de permanência a céu aberto. Isto faz com que os doentes internados compulsivamente – modalidade apenas existente para os doentes psiquiátricos – se encontrem na arbitrariedade de o serviço das suas áreas de residência possuir ou não um pátio. É um atropelo de Direitos Humanos flagrante e que apenas não é mais vezes discutido em público por falta de voz dos doentes que sofrem com esta questão. Não se incluir nesta Lei a obrigatoriedade de frequência de espaço exterior é, a meu ver, uma oportunidade perdida de colmatar algo que coloca doentes psiquiátricos internados na pior posição que alguém privado de Liberdade tem em Portugal – para comparação, o Regulmaneto Geral dos Estabelecimentos Prisionais determina que exista um período mínimo de 2h diárias em pátio, que pode passar a 1h diária em casos de mau comportamento, nunca podendo ser nulo;
Sugestão: Incluir na Lei a obrigatoriedade de frequência de espaço exterior por parte dos doentes. Serviços qualificados para internar doentes de forma involuntária terão que ter um acesso ao exterior – estes pátios devem ser criados em todos os serviços, não se podendo aceitar que apenas os serviços que já possuam pátios possam receber estes doentes, porque isso desvirtuaria todo o trabalho levado a cabo na procura de cuidados de proximidade e geraria serviços de “doentes graves”, que seriam prejudiciais à recuperação dos próprios.
- É difícil de compreender o que se pretende quando, na Exposição de Motivos da Proposta de Lei em análise se menciona “a avaliação clínico-psiquiátrica, relativamente à qual se prevê a colaboração da equipa multidisciplinar do serviço de saúde mental ao qual é deferida”. A avaliação clínico-psiquiátrica é um ato médico, levantando-se muitas vezes questões em relação à legitimidade, por exemplo, de médicos internos as poderem assinar de forma independente de um especialista. Se para elaborar uma avaliação clínico-psiquiátrica é necessário ter uma formação médica e, eventualmente, uma especialidade (ou grau equiparado a especialista) em psiquiatria, poder-se-á criar uma figura de um relatório de equipa que acompanhe essa avaliação, mas nunca alterar a natureza e responsabilidade técnica associadas ao documento;
Sugestão: Manter a avaliação clínico-psiquiátrica como um ato médico e não como um ato colaborativo de uma equipa multidisciplinar.
- Levanta reservas a utilização, ao longo do documento, da expressão “perigo previsto”. Ainda que para o Internamento Involuntário de Urgência se mantenha a necessidade de um “perigo iminente” e o formato do Internamento Involuntário pela via não urgente apresente um formato bastante garantístico, teme-se que possa a utilização desta expressão transmitir uma ideia errada do espírito do Legislador, passando a entender-se o tratamento involuntário como uma ferramenta para obrigar ao tratamento aqueles que se julga poderem, numa eventualidade, vir a gerar perigo por via da sua doença mental.
Sugestão: Repensar a utilização da conjugação de palavras “perigo previsto”.
Como pontos positivos desta Proposta, destacam-se o fim da privação de Liberdade por tempo indeterminado e o encurtamento da periodicidade da revisão obrigatória da situação do internado inimputável com a revogação do n.º 3 do art.º 92.º, bem como a prioridade que é dada ao Tratamento Involuntário em Regime Ambulatório, que permite aos doentes não ser afastados da sua comunidade para que sejam colocados em tratamento coercivo (nos casos em que é possível optar por esta via de tratamento coercivo sem internamento). Ainda que possa ser discutível a utilização do ponto ii), da alínea c) do número 3 do art.º 15.º no contexto de urgência, mantendo-se a necessidade da presença de perigo iminente para que o internamento seja acionado neste contexto, essa opção aparenta ser suficientemente garantística e proteger os melhores interesses do doente – ainda que seja questionável por que motivo se numerou estes critérios de forma distinta do que se via na Lei 36/98, na qual a capacidade para avaliar o sentido e alcance do consentimento se encontravam separados dos critérios ligados aos bens jurídicos.