A lei portuguesa está a largar o tabaco mais depressa do que a minha mãe
Eu não sou dado a confrontos. Aliás, quem me conhece bem sabe que nem sou muito dado a conversas que levem a conclusões. Vivo para discutir coisas abstratas ou outras que não estejam ao meu alcance para serem mudadas. A confissão que estou a tentar fazer é a seguinte: não gosto de discussões para definir vencedor e vencido. Sobretudo detesto se sentir que sou quem pode levar o troféu para casa. Por este motivo, queria agradecer aos decisores políticos que estão a fazer alterações à “Lei do Tabaco”. É que aos poucos vão fazendo com que a minha mãe largue o tabaco sem que eu tenha de discutir com ela para que o faça.
Se na maioria das casas portuguesas se diz “onde há fumo, há fogo”, na minha era bem possível que pudesse ‘haver’ a minha mãe também. Mais acrescento: se a maioria das mães sabe onde está tudo, eu soube sempre onde estava a minha à conta dos seus sinais de fumo. No entanto, diga-se, a minha mãe não é a maioria. Foi e é única na sua ternura e na aplicação letal do chinelo. Mas, quem diria que um dia os legisladores nacionais, que têm por fama serem demorados no emprego da mudança viessem envergar a sua chanata de fina lei antes que eu o tivesse de fazer. A verdade é que, mesmo estando crescido e suficientemente longe do seu nevoeiro de fumo londrino à Dickens, quero-a por muitos mais anos. Preocupa-me este vício, tal como lhe preocupava o meu de andar sempre descalço por casa. Um mecanismo de defesa sensato, não fosse ela usar o meu próprio calçado contra mim. Ainda hoje não consigo entrar numa secção de Havaianas sem começar a tremer.
O cerco à minha mãe e a fumadores como ela há muito que tem vindo a apertar. Relembro os primeiros movimentos que proibiam fumar em espaços fechados, com ou sem ventilação, com ou sem definição do que realmente se pode considerar um “espaço fechado”. O que também não podemos esquecer é a elevada carga fiscal em prática para desincentivar o cigarrinho depois do café ou do ato preferencial. Uma carga que pelo seu caráter de saúde pública até rompeu de forma pioneira — tal como a minha mãe rompeu o cerco — um princípio fundamental da gestão orçamental da nossa bela República: o princípio da não consignação. Uma ideia clara de que nenhuma forma de receita fiscal pode estar automaticamente atribuída a um gasto. Neste especial caso, e ainda calculado na mítica forma de escudos e contos, 1% (ainda que com limite máximo) da receita fiscal está atribuída a ações de combate ao cancro. O tabaco, o açúcar e o álcool são alvos clássicos e consensuais para tais medidas em nome da saúde pública. A mim cabe-me fazer por senhora minha mãe, a cada um cabe a liberdade de viver como se quer morrer. O resultado é certo, ao menos que se paute por um processo com nota artística.
Pela primeira vez senti o serviço público na pele com estas novas alterações à Lei do Tabaco. Tanto é que, se eu esperar o tempo suficiente, evitarei conversas difíceis. No futuro, espero eu, com os objetivos de restrição dos pontos de venda para 2025, ao menos a minha mãezinha terá de caminhar mais em busca do seu maço, ou se exercita bem, ou deixa de fumar de vez. Bem, no fim ela acabará por pedir ao meu pai para lho comprar. E, ele, na minha ficção mental finalmente fará como muitos: vai buscar tabaco para nunca mais voltar. Provavelmente por ir a Espanha para traficá-los para cá. É que o meu pai, tirando esta fuga imaginária, é muito dedicado às diligências do seu casamento.
Seja como for, a lei portuguesa está a largar o tabaco mais depressa do que a minha mãe. É um ponto incontornável e embaraçoso de admitir. Venho de uma casa que, além de ter um bom fumeiro, cultivou-me a ideia de que devemos crescer mais rápido do que o mundo consegue rodar. Desta vez foi refrescante ser ultrapassado. Isto se concordarem, porque eu agora também não quero armar nova discussão.
Crónica de Ricardo Lopes.
Criativo de profissão, licenciado e pós-graduado em Gestão, mas sem saber gerir a vida.