A linguagem e a estranheza em “Deus na Escuridão”, de Valter Hugo Mãe, em apresentação no Museu Nacional Soares dos Reis
“O fascínio de ir atrás deste texto passado da Ilha da Madeira começa, exatamente, porque, de repente, chego lá e as pessoas habitam a língua portuguesa fazendo, já, um desvio perante o padrão que eu uso, no padrão em que habito”, explicou Valter Hugo Mãe na apresentação do seu recente livro “Deus na Escuridão”, no Museu Nacional Soares dos Reis, dia 29 de Fevereiro, no Porto, que contou com a participação do escritor e editor Rui Couceiro, do artista plástico Albuquerque Mendes e da poeta Rosa Alice Branco, com o auditório do equipamento cultural cheio e com a atenção na obra lançada em janeiro de 2024 que se situa, exatamente, em Campanário, freguesia na Ilha da Madeira.
O que é a estranheza e a normalidade na arte? Até onde a estranheza e o abanão do cânone podem ir? Terá o público — quer seja o leitor, o ouvinte e o observador — que ser mero receptor ou, também, ser parte envolvente da descodificação do que lê, vê e ouve? Terá de trabalhar e contribuir com a sua imaginação para se envolver com a estranheza da arte, ou ter-lhe-á de ser tudo entregue de forma clara, limpa e simples, dentro de uma “normalidade”? Grande parte da conversa da apresentação de “Deus na Escuridão” centrou-se nestas mesmas questões que levaram Valter Hugo Mãe a reiterar: “Nós procuramos sempre uma perturbação qualquer e penso que vem daí a pulsão poética”, referiu.
Continuou dizendo que “acho que corremos por um pressentimento de que se perturbarmos as coisas um pouco, elas nos vão entregar aquilo que escondem. Vão-nos entregar mais do que nos estão a entregar no quotidiano, na normalidade.” E conclui: “O que é isso da normalidade? É um conceito francamente obsceno, até imprestável para um artista.”
É neste aspecto particular que se faz um paralelismo entre o abanão do que é, afinal, o padrão da linguagem com o exercício da pintura, por exemplo, brincando, até, com a desconstrução que existe na arte e pintura de Albuquerque Mendes, também presente: a tal perturbação da linguagem que, num quadro, pode ser equivalente a desenhar uma orelha desenquadrada no pescoço: “E estas orelhas estranhas, esta estranheza de um tipo saber, exatamente, onde podia pôr as orelhas e não as pôr, é esta estranheza que buscamos, depois, no texto. É a pertinência de deslocar alguma coisa, a pertinência de criar um desvio”, revelou Valter Hugo Mãe.
“Deus é exactamente como as mães. Liberta Seus filhos e haverá de buscá-los eternamente. Passará todo o tempo de coração pequeno à espera, espiando todos os sinais que Lhe anunciem a presença, o regresso dos filhos.“
E assim é no seu livro “Deus na Escuridão”, em que faz uso de expressões, construções frásicas típicas e locais da própria ilha da Madeira. Formas de linguajar que fogem ao padrão ou constituem um desvio da normalidade de falar, mas que existem por si só e abanam o que se constituiu como cânone continental.
Já Albuquerque Mendes deu o complemento da imagem. Referiu que lhe custou embrenhar na leitura enquanto criança, já que tinha os seus lápis para poder desenhar. Mas não deixou de sublinhar como era conhecedor do processo de escrita de Valter Hugo Mãe: “...escreve, escreve, escreve, deita tudo fora e volta ao início. Escreve, escreve, escreve, deita tudo fora e volta ao início.” Quando conheceu o escritor, confessou que “a primeira coisa que fiz foi perguntar coisas: ‘explique-me isto, porque fez assim, porque fez daquela forma“. Numa altura em que, como o próprio disse, ainda nem sequer tinha comprado algum livro de Valter Hugo Mãe, mas no desenvolver da conversa já lhe perguntava acerca das suas personagens. Afiançou que, desde aí, havia comprado vários, quase todos do autor, “se não todos, quase todos.” Reiterando ainda que um livro é sempre uma forma de não se ficar sozinho.
Em “Deus na Escuridão” consta: “Deus é exactamente como as mães. Liberta Seus filhos e haverá de buscá-los eternamente. Passará todo o tempo de coração pequeno à espera, espiando todos os sinais que Lhe anunciem a presença, o regresso dos filhos.” Recentrando a conversa no livro em si, Rosa Alice Branco atira que o livro é quase como um conjunto de regras para se saber viver, alicerçando que em Valter Hugo Mãe “o bem e o bom” se encontram ligados. Mas chama a atenção para a frase, “Deus é exactamente como as mães“, para explicar que “não são as mães que se assemelham a Deus, mas é Deus que se assemelha às mães“. Desde o início do livro está presente, de facto, este jogo entre a fé, a estranheza, o que é a estranheza, o poder da maternidade e o significado da fraternidade, o jogo de xadrez dos Deuses e a divindade no humano na própria terra.
Valter Hugo Mãe relembra: “Acho que todos nós sabemos o que isto é, de lutarmos por um espaço de estranheza, que é a única maneira de chegarmos a um espaço de novidade, que é a única maneira de aumentarmos quem somos, de aumentarmos o que somos e, por isso, de conquistar, ao insondável, um bocadinho mais de centímetros no mapa“. E complementa que é o autor que irá sempre perder o tipo de leitor que espera que lhe entreguem um texto limpo e sempre compreensível, sem esse mesmo espaço de estranheza.