A meritocracia e os seus ingratos descrentes
Onde nascemos e em que circunstâncias crescemos definem em muito a nossa forma de ver o mundo e, especialmente, como iremos viver. Esta frase sempre foi claríssima para mim, mas o facto de não ser consensual ao longo do espetro político é demonstrativa do que nos separa, e é quase sempre uma questão económica. Como é muito bem lembrado por João Ferro Rodrigues no seu livro A Era do Nós, citando Thomas Frank: “É um julgamento moral, proferido pelo bem-sucedido, tendo como perspetiva o seu próprio sucesso.”
O equilíbrio entre a liberdade e a consciência social orienta a minha maneira de ver todos os assuntos que analiso politicamente. Sendo liberal, defender a liberdade do individuo de viver a sua vida como bem entender é algo que me sai natural, mas que nunca pode existir em uníssono. Sem um Estado Social forte, que equipe quem não nasceu numa circunstância de conseguir por si atingir uma vida digna, não há liberdade que valha a ninguém.
Assim, o conceito de meritocracia sempre me fez imensa confusão, e especialmente como é defendido num país como Portugal. A meritocracia tem várias definições, mas em suma significa uma crença de que um individuo, com o esforço e o produto do mesmo, consegue singrar no que se proponha a fazer, porque o sucesso depende apenas e só dele mesmo.
Isto será fácil de acreditar para quem tenha nascido numa casa com pais com ensino superior, rodeado de livros, com a capacidade de se desenvolver intelectualmente desde muito novo, e numa freguesia com uma diversa oferta educativa e cultural, mas não é a realidade de demasiadas crianças neste país. Eu frequentei uma escola secundária onde colegas meus tinham como únicas refeições quentes as que faziam na escola. Colegas esses cujo único acesso a desporto, arte e cultura era o que a escola pública lhes dava, porque viviam numa das muitas aldeias que a circundava. Enquanto eu tinha pais que preenchiam a mesa de refeições com conversas sobre política, história e atualidade, colegas meus tinham pais a trabalhar em turnos, e faziam as refeições sozinhos.
A circunstância de partida das pessoas não é a mesma, e impressiona-me quem pretenda defender uma tese de que esta não é significativa. Se assim fosse, um dos maiores preditores de sucesso académico não seria o grau académico dos pais. Mas ideologias à parte, e colocando de lado interpretações retorcidas daquilo que é a realidade do país que tem 2,3 milhões de portugueses em risco de exclusão social, é importante analisar a meritocracia pura como modelo de justiça social.
Eu não sou marxista, e não me sinto particularmente gramsciana ao acreditar que nos devemos dividir por classes sociais. A meritocracia, e o mérito em particular, como fator de ímpeto individual não é algo a que me oponha. Mas isso só funciona quanto mais eficaz for o elevador social. E quando é preciso em média 5 gerações na OCDE para uma criança desfavorecida sair dessa condição, e quando vivemos num país onde é tão relevante onde nascemos, e que apelido temos, eu diria que estamos a falhar em muito, e que a visão dogmática da meritocracia é isso mesmo, dogmática.
Um dos grandes fatores de mobilidade social é permitir que uma criança de um meio socioeconómico baixo frequente uma escola de meio socioeconómico superior, e que no nosso ensino público essa diversidade exista. Em vez disso, construímos bairros sociais nas periferias das grandes cidades, não procurámos garantir que estas crianças tivessem transportes adequados para frequentar escolas mais centrais, e tornámos freguesias tão incomportáveis para alguém de classe média viver que alunos que entraram nas suas opções universitárias desistem da vaga porque não conseguem comportar o custo de vida. E não foi por falta de aviso, porque as associações e federações académicas há muito que o assinalam.
Há outro fator que define a minha visão sobre a meritocracia e me faz ter muitas dúvidas sobre a mesma. O desígnio final desse processo é medir apenas e só economicamente o valor social das pessoas. E eu tenho a profunda convicção de que isso não chega. Existem cuidadores informais que passaram e passam todos os dias a garantir que a vida de algum ente querido dependente é digna, e o mais confortável possível. Se formos medir o valor económico gerado por estas pessoas, será perto de nulo, mas o valor social e a dignidade que nos trazem como sociedade é incomensurável.
Uma visão meritocrática só funciona num país que ofereça os serviços universais e gratuitos necessários para minimizar ao máximo o impacto que a questão de berço tem na vida das pessoas. E não percebo que possamos defender que quem não se consegue manter à tona economicamente não tem mérito, mas quem tem a vida garantida desde o momento que nasceu devido à riqueza dos seus pais seja meritocrático. Talvez, e só talvez, o engodo não faça assim tanto sentido. De facto, descrente me confesso.