“A Metamorfose dos Pássaros”, de Catarina Vasconcelos: o outono da memória
Voltam a acontecer coisas especiais. Em Portugal, e não só, e parte da responsabilidade cai sobre A Metamorfose dos Pássaros: tem provocado reacções bonitas em vários sítios, como atesta a lista dos tantos prémios em vários festivais por onde passou, e agora em Lisboa, como imaginamos no resto do país, vêem-se espalhados pelas paredes o seu lindíssimo poster promocional. Várias das sessões, pelo menos na capital, contam com a presença da realizadora Catarina Vasconcelos.
Sobre o filme, parece haver pouco a dizer: é como um jogo oferecido, uma bonita oferta, que nos liberta a necessidade de o intelectualizar. Pois nele tudo é tão simples: é composto maioritariamente por planos de câmara estática, frequentemente muito aproximados, com objectos, ou detalhes, que descrevem uma vida; e quando se estica na distância, alongando a cena com movimentos gentis, nasce algo que só pode ser poesia. Quase tudo o que é filmado se narra, e a música abunda; a história vai-se fazendo com calma, entretecida em todas as partes formais que compõem o filme. Há pinturas, e há imagens que são autênticos quadros; naturezas-mortas elegantes e austeras, e uma curiosidade infantil pela cor do mar, pela cor das plantas. A narrativa discorre, lentamente, como um novelo que se transforma em tecido — é uma das imagens evocadas logo no início, entre as ternas brincadeiras de infância. É um retrato familiar, sem dúvida; mas quem são os actores — e de quem é a história?
Há várias ideias que atravessam o filme, apoiadas na sua narrativa altamente associativa, mas uma das mais evidentes habita fora dele, ou no limite de uma definição importante: quanto aqui é ficção, e quanto é memória — verídica? A reflexão operada pelos espelhos proporciona, perto do final, uma possível resposta à pergunta. Em termos de outros exercícios recentes, faz lembrar Stories We Tell, filmado por Sarah Polley em 2012, que também versa interessantes ideias sobre o papel da memória na nossa identidade; mas aqui, o filme de Catarina faz uma exploração mais profunda (e, uma vez mais, poética), que abarca, num exercício de cinema, todas as artes que lhe precederam.
Como pano de fundo a tudo o que se passa, está a guerra colonial, que toca tangencialmente a história, e é a seu propósito que se introduzem os motivos recorrentes do mar. Pelo meio, existe uma belíssima sequência de filatelia que desencadeia uma dos momentos mais interessantes do filme: uma narrativa construída linearmente expondo selos de Portugal e das colónias, que subliminarmente expõem imagens e símbolos do Estado Novo. Os diálogos de memória estabelecidos por Catarina vão assim do íntimo ao político e social, num retrato que além de familiar passa pela nossa ideia de Portugal.
A relação tão directa da imagem — de todo este cinema — com a memória e com a intimidade é absolutamente desarmante. É uma impressão que se tem no filme, mas que depois se nota em toda a sala, e nesta sessão em particular porque se pôde discutir e partilhar com a autora. Foi uma sessão especial, e recomenda-se a leitura de algumas das entrevistas da Catarina a propósito do filme. A Metamorfose Dos Pássaros pode ser boa companhia, pode despontar inocência e felicidade, e transformar o seu redor; tudo isto em simultâneo. É sentimental, e está munido de um muito apurado sentido de humor. Passa por aqui uma das maiores surpresas de 2021.