“A Metamorfose dos Pássaros”, de Catarina Vasconcelos: o outono da memória

por Alexandre Pinto,    20 Outubro, 2021
“A Metamorfose dos Pássaros”, de Catarina Vasconcelos: o outono da memória
“A Metamorfose dos Pássaros”, de Catarina Vasconcelos
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Voltam a acontecer coisas especiais. Em Portugal, e não só, e parte da responsabilidade cai sobre A Metamorfose dos Pássaros: tem provocado reacções bonitas em vários sítios, como atesta a lista dos tantos prémios em vários festivais por onde passou, e agora em Lisboa, como imaginamos no resto do país, vêem-se espalhados pelas paredes o seu lindíssimo poster promocional. Várias das sessões, pelo menos na capital, contam com a presença da realizadora Catarina Vasconcelos.

Sobre o filme, parece haver pouco a dizer: é como um jogo oferecido, uma bonita oferta, que nos liberta a necessidade de o intelectualizar. Pois nele tudo é tão simples: é composto maioritariamente por planos de câmara estática, frequentemente muito aproximados, com objectos, ou detalhes, que descrevem uma vida; e quando se estica na distância, alongando a cena com movimentos gentis, nasce algo que só pode ser poesia. Quase tudo o que é filmado se narra, e a música abunda; a história vai-se fazendo com calma, entretecida em todas as partes formais que compõem o filme. Há pinturas, e há imagens que são autênticos quadros; naturezas-mortas elegantes e austeras, e uma curiosidade infantil pela cor do mar, pela cor das plantas. A narrativa discorre, lentamente, como um novelo que se transforma em tecido — é uma das imagens evocadas logo no início, entre as ternas brincadeiras de infância. É um retrato familiar, sem dúvida; mas quem são os actores — e de quem é a história?

“A Metamorfose dos Pássaros”, filme de Catarina Vasconcelos

Há várias ideias que atravessam o filme, apoiadas na sua narrativa altamente associativa, mas uma das mais evidentes habita fora dele, ou no limite de uma definição importante: quanto aqui é ficção, e quanto é memória — verídica? A reflexão operada pelos espelhos proporciona, perto do final, uma possível resposta à pergunta. Em termos de outros exercícios recentes, faz lembrar Stories We Tell, filmado por Sarah Polley em 2012, que também versa interessantes ideias sobre o papel da memória na nossa identidade; mas aqui, o filme de Catarina faz uma exploração mais profunda (e, uma vez mais, poética), que abarca, num exercício de cinema, todas as artes que lhe precederam.

“A Metamorfose dos Pássaros”, de Catarina Vasconcelos

Como pano de fundo a tudo o que se passa, está a guerra colonial, que toca tangencialmente a história, e é a seu propósito que se introduzem os motivos recorrentes do mar. Pelo meio, existe uma belíssima sequência de filatelia que desencadeia uma dos momentos mais interessantes do filme: uma narrativa construída linearmente expondo selos de Portugal e das colónias, que subliminarmente expõem imagens e símbolos do Estado Novo. Os diálogos de memória estabelecidos por Catarina vão assim do íntimo ao político e social, num retrato que além de familiar passa pela nossa ideia de Portugal.

A relação tão directa da imagem — de todo este cinema — com a memória e com a intimidade é absolutamente desarmante. É uma impressão que se tem no filme, mas que depois se nota em toda a sala, e nesta sessão em particular porque se pôde discutir e partilhar com a autora. Foi uma sessão especial, e recomenda-se a leitura de algumas das entrevistas da Catarina a propósito do filme. A Metamorfose Dos Pássaros pode ser boa companhia, pode despontar inocência e felicidade, e transformar o seu redor; tudo isto em simultâneo. É sentimental, e está munido de um muito apurado sentido de humor. Passa por aqui uma das maiores surpresas de 2021.

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