A migração do melro

por Martinho Lucas Pires,    17 Fevereiro, 2025
A migração do melro

Estou a olhar para as luzes. São muitas, nesta hora de ponta. Vai tudo de regresso a casa, ou a fugir de regressar, pelo menos por mais umas horas. É sexta-feira à noite, mais uma nesta capital de um Estado-Membro da União Europeia, depois de mais uma semana carregada. A lua está cheia.

Suspiro. Estou com o rádio desligado, o corpo cansado, uma fome ligeira, e os óculos sujos. Nada de novo, nem sequer na forma com que vou travando, para não tocar o radar. Olho para os carros, para as luzes, para o ecrã do leitor de música, que está vazio. O semáforo fica vermelho, e os carros param, e a fila de luzes em que me encontro separa-se, eu aqui, os outros à frente, enquanto os semáforos abrem nas laterais e outros carros, com outras luzes põem-se a acelerar. Estou em frente ao semáforo, à espera. Fecho os olhos por um segundo.

Estou agora a olhar para o melro. Este tipo assentou ninho no pátio, já lá vai um ano, quando a trepadeira ainda estava a vestir-se para a Primavera. Acompanha-nos desde então, com presenças matutinas, voos curtos, e olhares estoicos. Há dois meses que não o víamos, e achámos que pudesse ter migrado, mas não. Esteve apenas a passear. Vejo-o bem, bem crescido, maior do que nunca, pousado na oliveira. Se calhar isto já é casa para ele, este cantinho urbano entremuros. Se calhar já tem amigos, já estabeleceu relações, fez planos, pôs o futuro em marcha. Se calhar, isto para ele já é uma vida.

A vida e o futuro: dois conceitos, uma realidade. Sinto-me tão presente, nos últimos tempos, que até arrepia. À minha volta correm todos os mundos, desde o íntimo ao global. Estou numa viagem, a percorrer um caminho, mas numa estrada ampla, cheia de possibilidades. Às vezes aproveito uns poucos e breves desvios para descobrir, ou fazer uma paragem e sentir o cheiro do espaço, antes de voltar a pegar no volante. Admiro as paisagens, as casas e as pessoas: sinto-me contente por ser uma migalha nesta engrenagem, uma testemunha casual do milagre que é o movimento.

Estou no presente, mas tenho pensado pouco nele. Não tenho ouvido discos, e apenas leio o mínimo de notícias para não perder ritmo e, confesso, não me desiludir demasiado com o estado das coisas. Procuro concentrar-me no que me está mais à mão, no que é mais imediato, como o caminho para a casa, de noite, após mais uma semana de aulas, antes do fim-de-semana. O futuro não é real, mas é certo, e vai chegando, aos poucos, sem darmos por ele. Quanto ao passado, aparece-me sem pedir licença, mas também sem me exigir qualquer tipo de nostalgia. Ora me traz uma memória de um momento antigo e exótico – a fotografia de um antigo colega de casa, sentado numa cozinha a ver uma série enquanto bebe uma garrafa de rum – ou me provoca o desejo por algo bom e confortável, como um disco dos Yo La Tengo, ou uma canção dos Wilco. Pequenas contrações imagéticas e espirituais que me vão ocupando os caminhos.

Por falar em contrações, a Carol diz-me que está com algumas, mas para não me preocupar, que são apenas de Braxton Hicks. “Braxton Hicks”, penso, era um bom nome para uma banda americana de indie rock saída do Midwest, quase tão bom como “Eschaton Game” ou “Luanda”. Mas a Carol preferia que ouvíssemos mais música brasileira em casa, como nos velhos tempos. Foi assim que descobrimos Geraldo Azevedo, “Dia Branco”. Se você vier / Para o que der e vier, comigo / Eu lhe prometo / o Sol, se hoje o Sol sair / Ou a chuva, se a chuva cair.

Parece que a chuva vai voltar, mas há coisas que vão terminar em breve, como outra semana de trabalho, outra cadeira de mestrado, e os meus trinta e seis anos. Nestas alturas penso sempre mais no que vem aí do que no que foi para trás. Afinal de contas, ainda estou em viagem. Quando parar, para um refresco, farei as honras que o tempo pedir.

Sugestões do cronista:

Toda a discografia dos Yo La Tengo ou, se preferirem, a seguinte ordem de escuta: Fakebook, Painful, Electr-O-Pura, I Can Hear the Heart Beating as One e And Then Nothing Turned Itself Inside-Out. Não desgostei do novo dos Mão Morta, Viva La Muerte, nem do espetáculo de Kendrick Lamar no SuperBowl, que pode ser visto no Youtube. Vi Ainda Estou Aqui de Walter Salles no cinema e achei bom. Na Netflix, Apple Cider Vinegar sabe a fast-food, mas entretém. Nas letras, continuo com Foster Wallace e a sua piada infinita.

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