A minha primeira explicação científica

por José Malta,    24 Maio, 2023
A minha primeira explicação científica
Fotografia de Tasos Mansour / Unsplash

É difícil precisar qual terá sido a nossa primeira explicação sobre a razão pela qual ocorre um determinado fenómeno na natureza, recorrendo a pressupostos comprovados ou experiências anteriores, aquilo que é vulgarmente denominado por explicação científica. Para maior parte dos casos, a primeira vez que algo deste género aconteceu foi com um familiar mais velho que, embora não tivesse qualquer formação em qualquer área científica, nos conseguiu explicar à sua maneira o fenómeno em questão, sem fugir à veracidade dos factos e sem usar termos demasiado técnicos ou enfadonhos. São estas explicações que permanecem na nossa memória porque, para além de nos terem sido transmitidas por pessoas que nos são muito queridas, conseguem ser as mais importantes que obtivemos até hoje. 

Lembro-me perfeitamente daquela que ainda hoje encaro como a minha primeira explicação científica. Devia ter os meus quatro ou cinco anos e estava em casa dos meus avós, no campo, onde passei a maior parte da minha infância e adolescência. Num dia tempestuoso e de trovoada, a luz acabou por falhar e como qualquer miúdo, para além do escuro, tinha também medo do som da trovoada. Como reguila que era, fazia muitas asneiras, mas também me amedrontava com pouco. Quando estávamos sentados à mesa da cozinha, o meu avô viu-me aflito e incomodado com o barulho e resolveu assustar-me ainda mais:

— Andaste a portar-te mal, não foi? Agora Deus está a ralhar contigo.

Lembro-me de ter começado quase a chorar com a brincadeira do meu avô que, apesar de ter sido sempre muito afectuoso comigo, tinha um sentido de humor negro que não tinha quaisquer problemas em usar, fosse qual fosse a situação. Começou logo a rir-se como se aquilo lhe tivesse dado algum gozo. Vestiu o casaco e saiu pouco tempo depois, com o candeeiro a gás e o guarda-chuva atrás para ver como estava a criação e se a tempestade não estava a provocar estragos. Permaneci amedrontado e mal o meu avô virou costas lembro-me que a minha avó, que estava a preparar o jantar, ter dito com aquele seu jeito tão característico:

— Raio do homem! Parece que é parvo a querer assustar assim a criança!

Fez-me questão de me tranquilizar, ao dizer para não ligar às parvoíces do meu avô. Perguntei à minha avó, já a choramingar, se havia alguma razão que levasse a que tal fenómeno ocorresse ou se era mesmo Deus que estava zangado com as traquinices que eu fazia. Obtive uma resposta que até hoje não esqueço:

— São as nuvens que lá em cima, quando estão muito carregadas, ao chocarem umas nas outras fazem aquilo.

Para muitos esta pode ser uma explicação banal, mas para mim esta foi uma explicação extraordinária. A minha avó, uma senhora que vendia fruta na praça e trabalhava no campo, cheia de superstições e com apenas a antiga quarta classe, a dar-me aquela que hoje ainda entendo como a minha primeira explicação científica e que acabou por ser o principio das muitas explicações científicas que tive ao longo da minha vida. Não deixa de ser curioso que tenha utilizado a palavra “carregada” que remete para a carga, pois são as cargas negativas das nuvens e também a junção de massas de ar quente e ar frio que justificam a ocorrência da trovoada. De facto, é curioso como muitas vezes a simplicidade popular nos consegue explicar tais fenómenos, com pressupostos científicos por de trás, de uma forma simples e natural. E, para além de ter ficado tranquilizado, fiquei aparentemente esclarecido com esta explicação da minha avó. António Lobo Antunes disse numa entrevista que “Saber fazer pastéis de bacalhau é tão importante como ter lido Os Lusíadas“, como exemplo de que a cultura não se baseia só em ler muitos livros e saber muitos conceitos e que não temos de julgar as pessoas por não terem habilitações ou saber isto ou aquilo. Nem todo o especialista em meteorologia ou geofísica tinha a capacidade de explicar a uma criança de quatro ou cinco anos porque é que troveja, isto dado aos termos técnicos e complexos com que os especialistas e os cientistas convivem diariamente. Mas a minha avó, lá se conseguiu safar com esta sua explicação.

Mais tarde, os dias de trovoada foram sempre de grande animação durante a minha infância. Mesmo com os meus pais e com a minha irmã, quando falhava a luz devido ao mau tempo, era uma festa. Fazíamos sombras e imitações à luz das velas, e quando a luz eléctrica regressava a festa acabava. Eram pequenas coisas que nos permitiam distrair do som da trovoada e da tempestade. Na escola aprendi o porquê de vermos primeiro a luz e só depois o som, pois um propaga-se muito mais rapidamente do que o outro. Aprendi também o princípio dos três segundos. Entre o momento em que vemos a luz do relâmpago e ouvimos o seu som, cada três segundos simbolizam que este está a um quilómetro de nós. Isto porque a velocidade do som são cerca de 340 metros por segundo e o triplo é aproximadamente um quilómetro. Como a luz se propaga a cerca de trezentos mil quilómetros por segundo, podemos assumir que a luz do relâmpago surge de um modo quase instantâneo. Fui crescendo e aprendi que, tal como o som, a luz também é uma onda mas também se comporta como uma partícula (fotão), algo que no início me fazia alguma confusão. E depois outras coisas ainda mais complexas como o electromagnetismo, as equações de Maxwell, o formalismo da mecânica quântica, e por aí fora. Para maior parte das pessoas tudo isto terá começado com uma explicação simples de um fenómeno banal do nosso quotidiano, proferido por um familiar quando ainda éramos muito jovens e que ficou para sempre connosco.

Nos dias tempestuosos e de trovoada, lembro-me sempre desta explicação da minha avó. Não precisou de fundamentos de electromagnetismo, nem de nenhum curso de meteorologia para me explicar o fenómeno em si. Com a quarta classe, explicou-me ao seu jeito, esclareceu-me, e a sua explicação ficou para sempre na minha memória. Graças à minha avó fiquei a saber porque é que os relâmpagos e os trovões aparecem e afinal, ao contrário do que o meu avô me queria fazer acreditar, não é por Deus estar a ralhar comigo. E ainda bem. Se assim fosse o tempo estaria sempre uma miséria e a culpa seria toda minha.

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