A minha terra é melhor do que a tua
Rui Cruz é humorista, stand up comedian e um génio (palavras dele). Escreve coisas que vê e sente e tenta com isso cultivar o pedantismo intelectual que é tão bem visto na comunidade artística.
Este fim de semana fui até à minha terra. Foi Páscoa e na Páscoa vai-se à terra. Isto se tiveres sorte de ter terra e eu tenho. Odiaria ser um daqueles lisboetas de 5ª geração que não tem terra, não tem a sua terra, a terrinha, perdida “lá na província” e onde se brincou com aqueles bichos que na cidade só se viam no talho e se bebeu leite sem vir do pacote. Essa terra. E a minha é melhor do que vossa. Primeiro porque é a minha, depois porque é de facto a melhor do mundo.
Na minha terra há sempre comida e bebida para toda a gente. Seja porque é dia de festa, seja porque decidimos que, apesar de não haver qualquer motivo para a fazer, é dia de festa. Sim, porque na minha terra qualquer acontecimento é desculpa para comer e beber, seja ele um baile de verão, um velório ou simplesmente repetirem a novela “Gabriela” na SIC.
Na minha terra há histórias que se contam e histórias que se criam todas as semanas, épicas, epopeicas, com heróis e heroínas que são conhecidos há 3 gerações, como a do meu bisavô que se barricou no posto da GNR, a do “Tesouro do Miranda” que mais não era que penicos com as necessidades fisiológicas de um acamado envergonhado enterrados num quintal ou a do Valentim que comeu os versos que o Mota tinha acabado de escrever e ainda atirou descontraído “com a fome com que estou, se fossem do Camões comia na mesma”.
Na minha terra as pessoas riem com vontade e riem tanto dos outros como de si, não tendo problemas em contar à mesa do café a estupidez que acabaram de fazer. Todos têm alcunhas, todos sabem as histórias mais humilhantes de toda a gente e toda a gente sabe as tuas. Na minha terra o humor raramente tem limites e quando tem, esses limites desaparecem ao 6º copo que é pago como pedido de desculpas e aí já é a própria vítima quem mais ri.
Na minha terra as pessoas são brutas, às vezes até um pouco rudes, mas são as pessoas mais sinceras e disponíveis que vais conhecer na tua vida, porque na minha terra um amigo é para a vida, mesmo quando se chateiam. Podes estar um ano sem falar com alguém porque te roubou um metro de terreno ou andou aos beijos com o teu ex, mas no dia em que esse alguém tiver um acidente a lançar um foguete ou perder um familiar, tu vais ser o primeiro a bater-lhe à porta com uma grade de minis, um queijo e um abraço.
Na minha terra há gays, pretos e chineses, há mulheres, homens e crianças, há casados, divorciados e solteiros e todos são iguais: todos são alvo de gozo, por igual, todos levam na tromba, todos dão na tromba, todos bebem e riem e choram e ninguém é posto de parte desde que seja boa pessoa, não tenha a mania e aguente bem a bebida. Especialmente esta última.
Na minha terra há invejas, há problemas, há jogadas políticas e também algum pedantismo totalmente descabido, mas até nisto a minha terra é melhor do que a vossa, porque a maioria de nós está-se figurativamente a cagar para esta gente e, por vezes, até literalmente quando a noite vai longa e aquela 10ª aguardente de mel te dá ideias bem divertidas.
Na minha terra há estrangeiros, centenas, de Inglaterra, Alemanha, Holanda, França ou até da Austrália. Estrangeiros que vieram um dia e ficaram. Porque em todas as suas viagens não encontraram um sítio melhor. Porque não há.
Na minha terra há rios e serras, há calor e há neve, há javalis de 2 e de 4 patas e há uma felicidade que poucas vezes vi noutros lados. Na minha terra há gente que sobrevive ao esquecimento e às tormentas do isolamento, dos fogos e da velhice com a força dos campeões do passado e sorria quando o normal seria chorar.
E é por isso que a minha terra é melhor do que a vossa. Porque é a minha, mas está a uma viagem de ser a tua também. Vem, de certeza que esse dia será mais um dia de festa. Ali são todos.