Quarentena. Ressuscitar a saudade

por Rui Cruz,    12 Abril, 2020
Quarentena. Ressuscitar a saudade
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Rui Cruz é humorista, stand up comedian e um génio (palavras dele). Escreve coisas que vê e sente e tenta com isso cultivar o pedantismo intelectual que é tão bem visto na comunidade artística.

Hoje é Domingo de Páscoa, mas se não tivesse visto ontem os “10 Mandamentos” na TV nem tinha dado por ela. É estranha a maneira como o tempo em quarentena nos afecta. Nem sequer fiz cabrito, coisa que sempre cozinhei mesmo quando, noutras ocasiões, passei a Páscoa longe dos meus ou da minha terra. Acabei, inclusivamente, a comer caril com leite do coco, coisa que está para a Páscoa como um faqueiro de 24 peças está para o bailado clássico. E tudo porque não consigo sentir que estamos “naquele dia”. Não é pela religiosidade da coisa, que isso não me diz muito. Aliás, as festas religiosas sempre me soaram a algo estranho, principalmente estas em que se come demasiado e se bebe demasiado em honra de pessoas que apregoavam a gula como pecado capital. Não sinto que estamos “naquele dia” porque é estranho passá-lo assim, fechado. E fechado há semanas, numa mecânica repetição de gestos e actividades que se transformam numa rotina forçada.

Hoje tive saudades. Mas o problemas foi que tive saudades de ter saudades. Sim, eu sei isto soa a Raúl Minh’alma ou a Rodrigo Sol Paixão, mas é verdade. É que mesmo nos outros anos em que passei esta data fora de casa ou da terra, sempre tive aquela ponta de saudade. Saudade de estar a comer com a família, de abrir aquela garrafa de vinho ou aguardente que está guardada, de me juntar com a minha malta à noite no Impala e ir ao Arganil Rock beber até cair várias vezes, saudade de no dia seguinte tentar esconder a ressaca do meu irmão mais novo e de ter medo de ir ao multibanco ver o saldo, saudades de tudo isto. Já este ano… nada. Zero. Nicles batatóides (bora trazer isto de volta!). Foi como se nem me importasse. E isso deixou-me ligeiramente preocupado porque me fez pensar, pela primeira vez, na maneira como este período me está a afectar e como nos pode afectar a todos.

E o meu medo é que isto, este isolamento, esta forma maquinal de viver, rotineira, isolada e meio dormente se torne o novo “normal”. Que as saudades que há dias me (nos) invadiam, de sair, de ir a um concerto, a um espectáculo, beber um copo, até de ouvir um carro com um parolo a conduzir com kizomba em altos berros deixem de aparecer e fique apenas esta dormência, este estado de não-existência. O homem é um animal de hábitos e eu estou a começar a ficar habituado a isto. E não quero. O que eu quero é continuar a ter saudades, a sentir-me preso em casa, a ficar irritado por não poder actuar e estar convosco, a desesperar por abraçar e beijar os meus amigos, a ficar deprimido por não dar festas a um cão há mais de um mês… quero isto, manter esta inquietação, esta insatisfação e vontade de voltar a viver lá fora, no mundo que fizemos para nós.

E é por isso que, depois de comer o caril com leite de coco e de acabar de escrever isto, vou abrir uma garrafa de vinho tinto e uma aguardente que tinha ali guardada, vou ligar à minha malta, meter costeletas de borrego a descongelar (vá, eu sei que não é cabrito, mas é parecido) e vou forçar-me a ter a minha Páscoa. Não porque Jesus ressuscitou, mas porque eu preciso de o fazer.

Aqui ficam as sugestões do dia:

Comédia:

Frankie Boyle – Last Days of Sodom

Música:

Heavenwood – The Tarot of The Bohemians Pt. 1

Cinema:

Monty Python – Life of Brian

https://www.youtube.com/watch?v=uaEU0GQhkqA

Literatura:

Fiódor Dostoiévski – O Duplo

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