A Natureza, esse restaurante
Ficcionista, ensaísta, poeta, tradutor, Frederico Lourenço nasceu em Lisboa, em 1963, e é actualmente professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Traduziu a Ilíada e a Odisseia de Homero.
Uma das melhores frases de Woody Allen tem de ser esta: “nature is just an enormous restaurant”. Frase que, no entanto, não é tão original assim: já Voltaire, esse imperador do pessimismo, afirmara que “as moscas nasceram para ser comidas pelas aranhas e os homens para serem devorados pelos desgostos”.
Um filósofo deve obrigatoriamente ser vegetariano? Pitágoras e Empédocles, Giordano Bruno e Voltaire teriam dito que sim. Porém para Wittgenstein e Bertrand Russell, falta ao vegetarianismo qualquer sustentação filosófica. Eu tenho vindo a ser cada vez mais vegetariano – e hoje identifico-me como vegano, embora não queira ser fanático e, por isso, se outros cozinharem para mim, como o que eles me derem. Sempre na esperança de que, ao menos, seja peixe.
Peixe é menos cruel ou menos lesivo da saúde do planeta e do futuro das gerações vindouras do que carne? Uma das desculpas que dou a mim próprio quando como peixe é dizer-me que, se não fosse eu a comê-lo, outro peixe o haveria de comer. Os peixes, se os deixássemos em paz no mar, mesmo assim não teriam nascido para outro destino que não o de serem comidos por um peixe maior.
É mais difícil proceder a este tipo de racionalização relativamente aos muitos mamíferos que diariamente são comidos. Se eu parasse o camião que, na auto-estrada à torreira do meio-dia, leva porcos ou vacas para o matadouro e soltasse os animais num paraíso artificial por mim comprado para o efeito, não poderiam eles viver, felizes, a sua vida normal de porcos e vacas?
Outra dúvida (meta)física: porque é que a Natureza criou animais pacíficos como gazelas que se alimentam de erva e, ao mesmo tempo, leões que se alimentam de gazelas? Porque é que há seres que, para sobreviver, têm de matar outros seres; e outros que sobrevivem perfeitamente sem matar nada nem ninguém?
Por outro lado, os animais que matam serão mais “horríveis” que aqueles que não matam? O cão fiel e adorável, que é quase uma pessoa como nós em nossa casa, quando mata por nenhuma razão aparente um coelho indefeso, passa a ser um cão perigoso que devemos mandar abater? Os sanguinários programas televisivos que ao sábado de manhã nos mostram leoas a caçar gazelas em imagens de “gore” insuportável têm pelo menos a utilidade pedagógica de nos mostrar depois as mesmas leoas em cenas de desvelo e carinho maternal com as suas crias.
É tão difícil entender a Natureza, porque os nossos rótulos mentais de “bons” e “maus” não se aplicam, como tão claramente se aplicam num filme em que vemos nazis a matar judeus. É difícil aceitar que a matilha de hienas a comer ainda vivo um hipopótamo bebé não é constituída por hienas “más”. É constituída por hienas.
Tal como a humanidade é constituída por seres humanos. O problema aqui fia mais fino. Não é muito hábito – a não ser em casos excepcionais – que os seres humanos se alimentem de carne humana. Mesmo assim, se propusermos uma analogia de homens com gazelas, temos logo um candidato ao papel de leão: o próprio homem. Já o poeta latino Plauto formulou esta verdade por meio da expressão “homo homini lupus”: “o homem é um lobo para com o próprio homem”. Ou, nas palavras de Schopenhauer: “a principal fonte do mal mais grave que atinge o homem é o próprio homem”.
Os animais são involuntariamente cruéis uns em relação aos outros para sobreviver. A crueldade do homem relativamente ao seu semelhante é mais refinada. Dou novamente a palavra a Schopenhauer: “O modo como os homens se tratam uns aos outros evidencia, em regra, injustiça, a mais completa iniquidade, dureza e crueldade. Donde a necessidade do Estado e das leis. Pois em todas as circunstâncias, que escapam ao controlo da lei, vem ao de cima a brutalidade do homem para com o seu semelhante, a qual procede não só do seu egoísmo ilimitado, mas também da sua maldade. Como o homem é tratado pelo homem é-nos mostrado pelo comércio de escravos negros por causa do açúcar e do café. Mas não é preciso ir tão longe: veja-se a criança de cinco anos, obrigada a trabalhar dez, doze e catorze horas por dia numa fábrica.”
Ora há um factor que, filosoficamente, pode ser entendido como denominador comum entre a crueldade do negreiro para com o escravo e a crueldade da leoa para com a gazela. Esse factor é aquilo a que Schopenhauer chama a “vontade”. Para Schopenhauer, tudo o que compõe a multiplicidade do mundo esforça-se por existir e por viver, instigado por essa vontade que a tudo subjaz. A manifestação do “Wille” (vontade) é “wollen” (querer); e o facto de não haver apenas um único ser no mundo, mas uma multiplicidade incontável deles, leva a que as diferentes vontades necessariamente colidam, e por isso querer é fazer prevalecer a minha vontade sobre a vontade dos outros: o leão faz prevalecer a sua vontade de se alimentar sobre a vontade do antílope de viver; e por isso querer é indissociável de sofrer.
O sofrimento dos animais é algo que nos toca a nós, humanos, de formas muito diversas. Há pessoas que lhe são mais ou menos indiferentes; outras sofrem tanto por ver os animais sofrer que a vida se lhes torna quase insuportável. Pessoalmente, cada vez que sou confrontado com o sofrimento de animais (sejam eles porcos a serem levados para o matadouro ou cães abandonados a vaguearem no meio das auto-estradas deste país) só me lembro destas palavras de Schopenhauer: “a vida traz tão claramente a marca de algo que deveria tornar-se-nos repugnante, que é difícil compreender como foi possível deixarmo-nos convencer que a vida existe para ser gozada com gratidão; e o homem, para ser feliz.”
A minha única (pequeníssima) consolação é que, se eu não comesse o peixe que veio parar ao meu prato, outro peixe o comeria. A Natureza, esse restaurante? Não: esse matadouro.