A noite em que Slow J abriu um novo capítulo no hip hop português
As filas acumulavam-se à porta do Estúdio Time Out, no Mercado da Ribeira, ainda antes da hora marcada para o início da festa. Por estar esgotado desde o dia anterior, circulavam boatos de bilhetes a serem vendidos a preços descabidos. Sentia-se a emoção e o frenesim, a ansiedade pelo que estava para vir. Dias antes, um artigo de Vasco Mendonça no Observador afirmara que The Art of Slowing Down poderia vir a ser o disco do ano; citando Valete, TAOSD seria “das coisas mais bonitas que o hip-hop português produziu”. A crer na intensa actuação nos estúdios da Antena 3, no início de Março, não era difícil de imaginar que assim fosse.
Alguém dizia: “não é uma ocasião qualquer, não é um concerto normal; esta é a noite do lançamento do primeiro álbum do Slow J. É especial”. O músico, rapper e produtor setubalense atraiu, desde o lançamento do seu EP em 2015, elevadas expectativas e uma comunidade fiel de fãs. Além disso, conquistou o reconhecimento de muitos artistas de referência da cena do hip hop nacional. De certa forma, esta noite no Estúdio Time Out, quer antes de começar quer já no fim do concerto, soube a consagração. Para um artista às portas de lançar o seu primeiro álbum, não é dizer coisa pouca.
Slow J subiu ao palco, rodeado de um mar de aplausos e gritos de incentivo, ao mesmo tempo que interpretava a primeira faixa do novo álbum – Arte. Quando falou pela primeira vez com o público, poucos minutos depois, percebia-se nos olhos e nos gestos que estava abismado. E não era tanta a surpresa como a gratidão: “muito obrigado, muito obrigado”, repetia muitas vezes ao longo do concerto, pondo uma mão no peito. “Este é um álbum que fala sobre como é bom fazermos aquilo de que gostamos”; fruto de um trabalho de dois anos, está finalmente cá fora. “Hoje é o dia”.
A dado momento, Slow J anuncia o alinhamento. Vai interpretar o novo álbum do princípio ao fim, com direito a tudo: “nem cortámos o solo de dois minutos de saxofone”. É uma opção arriscada: ninguém na sala conhece a maioria das quinze canções (fora os quatro singles, “Comida“, “Serenata“, “Vida Boa“ e “Pagar as Contas”). Mas, diz o músico, “para mim é assim que faz sentido apresentar-vos o álbum”. A escolha acaba por se revelar acertada; mesmo nas músicas mais calmas (e são umas quantas, num trabalho que celebra precisamente a arte de abrandar), o público escuta atentamente, com respeito, balança-se, agita os braços, aplaude. É uma descoberta conjunta, uma comunhão entre os fãs, que prova a confiança que também depositam no trabalho do músico.
Mas efectivamente os singles constituem os momentos mais fortes do concerto. Em “Pagar As Contas“, sobem ao palco Gson e Papillon (antes já tínhamos assistido à colaboração de Nerve, em “Às Vezes“). Canta-se em uníssono, na sala. Momentos depois chega “Vida Boa”, provavelmente o momento mais intenso do concerto. Após o drop de cada refrão, salta-se, de braços no ar; a sala voa. Slow J não resiste e desce para o meio dos fãs. Mais adiante no concerto, será ao contrário: convidará alguns dos presentes a subirem ao estrado, arrastando uma multidão entusiasmada para cima do palco. Se alguém houvesse que ainda não se considerasse seu amigo, não terá ficado indiferente aos cumprimentos com as pessoas nas filas da frente, e aos gestos embevecidos e de devoção mútua entre artista e público. Em cada gesto e interpretação, com a sua simples presença (no concerto e no depois, no convívio com os fãs), Slow J transpira uma humildade de certa forma assombrosa, para um meteorito em ascensão (e que ascensão: a letra J, projectada no fundo durante boa parte do concerto, treme, inquieta, pronta a dar-se a conhecer).
O músico contou com o suporte precioso de Diogo Ribeiro nos teclados e na guitarra, e de Fred na bateria acústica e electrónica. Há ainda samples a flutuar e a criar atmosferas diversas. Ouve-se um saxofone em “Biza”, e, imagine-se, uma guitarra portuguesa em “Sonhei para Dentro”. A riqueza deste álbum, pelo que o concerto evidencia, está também na diversidade e cruzamento de géneros musicais: brincando em certos momentos com o jazz, recorrendo a ritmos africanos, trazendo a guitarra de power rock na primeira faixa, e chamando ainda à equação o hip hop mais tradicional.
No encore, depois de interpretar duas das suas músicas mais antigas (“Objectivo“, e “Tinta de Raiz“), fecha com “Cristalina“. É um momento de festiva solenidade. Sóbrio e intenso, numa interpretação emocionada (parece que a voz lhe treme) que antecede uma saída de palco discreta.
A noite era de aniversário do site Rap Notícias, a celebrar cinco anos. E todas as actuações que antecederam e sucederam o concerto central fizeram referências a Slow J: simultaneamente promessa, herói e símbolo de um novo capítulo no hip hop português. Entre o público ouviam-se comentários: a música deste senhor não cabe nas gavetas que conhecemos. Há aqui qualquer coisa de novo que está a nascer. E o público no esgotado Estúdio Time Out sentia-se privilegiado por ter podido estar presente nesta noite e assistir em primeira mão a este momento. É de esperar que a recepção do álbum e a carreira de Slow J só sigam um sentido: o sucesso. E o país (e o mundo, quem sabe?) só tem a ganhar com a arte de abrandar.
Fotografias por Sofia Rodrigues