No epicentro de um terramoto chamado Tirzah

por Bernardo Crastes,    25 Março, 2024
No epicentro de um terramoto chamado Tirzah
Fotografia de Rita Carmo
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Foi no âmbito do novíssimo festival Belém Soundcheck que assistimos à estreia de Tirzah em Lisboa — dado que apenas havia apresentado Devotion, o seu aclamado álbum de estreia, no Primavera Sound do Porto, em 2019. Logo após a experiência audiovisual de Soundwalk Collective e Patti Smith, a artista britânica tomou o palco do Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém para um concerto que não deveria gorar as expectativas de alguém em busca do R&B vaporoso de Devotion, pois foi devidamente anunciado como uma apresentação de trip9love…???, o seu assumidamente experimental e desafiante terceiro disco de originais.

O inesperado atraso de 15 minutos antes do início da actuação revelou-se mais interessante do que os atrasos normalmente são, dado que, ao final desse tempo, vimos ninguém mais ninguém menos que Björk a entrar na sala, envergando um nada discreto traje dourado e a sentar-se bem no centro do público. Já sabíamos que a artista se encontrava por Lisboa numa tour cultural — havia estado a assistir à actuação de Patti Smith logo antes e esteve também presente no Sónar Lisboa no dia anterior — mas foi entusiasmante partilhar os deveres de público com uma das mais reputadas artistas de música experimental de sempre. Se, de início, a presença de Björk ameaçava sobrepor-se ao próprio espectáculo em si, Tirzah rapidamente roubou as atenções para si, tomando o palco minimalista e assolando a pequena sala do CCB com um concerto que se assemelhou em muitos pontos a um terramoto.

Uma torrente de ruído branco que poderia ser confundida com o som de um riacho ou o zunido de uma floresta tropical abriu o espectáculo, dando o mote para uma actuação puramente digital, mas que encontra muitos paralelismos na natureza. Isso notou-se principalmente nos baixos cavernosos que faziam a sala vibrar, evocando vibrações de uma poça de água num terreno rugoso. “u all the time”, uma das mais reconhecíveis canções de trip9love…??? fez-nos sentir exactamente isso, algo que o inteligente design da luz do palco acompanhou. Três feixes de luz, dispostos na vertical, começaram a tremelicar, preconizando uma eventual destruição daquilo que até então havíamos considerado estável.

Fotografia de Rita Carmo

É que o concerto começou por explorar a invulgar estrutura de trip9love…???, desenhado para parecer uma única e longa canção. Os segmentos, que começavam de forma abrupta logo a seguir às palmas do público, traziam de volta aquele que é literalmente o mesmo ritmo feito numa drum machine, mas com diferentes melodias. O efeito é desorientante, como se caminhássemos por um corredor envolto em fumo, abrindo diferentes portas que nos colocam num outro ponto temporal de uma sessão de improvisação ancorada na mesma batida, como quando ouvimos Tirzah cantar “Promises” e “he made”. Eventualmente, esta estrutura poderia tornar-se repetitiva. Mas foi aí que as coisas começaram a mudar.

As canções tornavam-se cada vez mais distorcidas, como se o som se expandisse e o volume aumentasse para lá daquilo que a compressão do som pode aguentar, revelando as fracturas sónicas da música. Mesmo uma das poucas canções não provindas de trip9love…???, a doce “Say When”, roubada a Devotion, sofreu esse tratamento nas mãos de Coby Sey, o colaborador regular de Tirzah que se encontrava no comando da mesa de mistura. Uma guitarra eléctrica dissonante permeava várias das canções, contrastando com as teclas almofadadas dos sintetizadores e com a entrega delicada e intimista da voz de Tirzah, que parece permanentemente engripada. A mistura de som favorecia a distorção e o eco, enterrando essa voz debaixo de camadas mais e mais opressoras. “I see you / I just feel so good”, canta ela em “2 D I C U V”, parecendo chamar-nos para o lado de lá da distorção.

Pela altura em que estamos claramente no ápice do concerto, as canções (por mais que seja estranho chamar-lhes isso) parecem negar qualquer tipo de estrutura ou convenção daquilo que é agradável ou previsível. Para além da estrutura, Tirzah vai negando a sua própria presença, afastando-se cada vez mais da boca do palco, deixando entrever apenas a sua silhueta no fundo, cantando do escuro. Estamos todos em terreno movediço, afundando mais nas nossas cadeiras, pressionados pela tremenda força do som que sai do palco. Nem todas as pessoas se deixaram enfeitiçar por este método desafiante de envolver o público, tendo algumas abandonado a sala — mas claro que isso é puramente uma questão de gosto ou abertura a estilos musicais mais experimentais.

“Esta é a nossa última canção”, diz-nos Tirzah, económica nas suas palavras. “Reach Hi”, que fecha Devotion, faz uma aparição na sua original forma delicada, trazendo-nos de volta a uma certa normalidade sonora e dando-nos tempo para lamber as feridas abertas por aquilo que veio antes, permitindo-nos voltar a enfrentar o mundo exterior sem estarmos demasiado danificados.

Há que admirar a coragem de Tirzah. Tendo atingido um relativo nível de reconhecimento no mundo da música alternativa, ao invés de seguir a trajectória na direcção do apaziguamento das massas, continua a entrar mais dentro da mistura musical única que tem vindo a criar ao longo dos últimos anos, ainda que isso lhe valha a alienação de alguma parte da sua base de fãs. Mas algo nos diz que isso não lhe importa absolutamente nada.

Tirzah voltará a apresentar-se em Portugal ainda este ano, no segundo dia de Primavera Sound Porto, 7 de Junho, ao lado de artistas como Lana del Rey, Justice e Lambchop.

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