“A Oeste Nada de Novo”, de Edward Berger: uma carnificina sem cessar-fogo
Este artigo pode conter spoilers.
Num bosque sereno, uma raposa amamenta as crias, ao abrigo improvisado dum tronco oco, resistindo às brisas afiadas do inverno. A poucos quilómetros, um campo a que o cinema já nos habituou. Sob a neblina pálida, centenas de cadáveres jazem no solo árido, seguidos de espingardas tombadas e arame farpado. Os disputantes são indistinguíveis, tão imundos que estão os uniformes.
Ao longe, disparos, avionetas e gritos desalmados. Os soldados alemães correm pelas trincheiras, por salvação ou uma metralhadora. Um deles, o jovem e paralisado Heinrich, é empurrado de volta para a terra de ninguém. Cegado pela terra que lhe cospem as bombas, este adolescente tropeça nos camaradas defuntos. Larga a arma de fogo e agarra na pá atrelada ao cinto. Levanta-se e espeta-a no peito do primeiro francês que avista.
Em letras maiúsculas, no negro abrupto e silencioso, o título: “Im Westen nichts Neues”, alemão para “A Oeste Nada de Novo”. Os corpos conhecem um último resquício de dignidade — ser enterrados num caixão. As botas e uniformes são empilhados, prontos a lavar e costurar. De relance, ninguém diria que mergulharam em piscinas de sangue, vómito, fezes e lama. Impecáveis, serão reutilizados pela próxima companhia, mais uma turma ingénua. A etiqueta com o nome de Heinrich fora arrancada da farda e jogada ao chão.
A violência gráfica e sonora da abertura de “A Oeste Nada de Novo”, realizado por Edward Berger, é predileta de qualquer bom filme de guerra. Pensemos na chegada dos americanos à Normandia, em “Saving Private Ryan” (1998), de Steven Spielberg, ou, mais recentemente, nos britânicos emboscados em Dunquerque, no homónimo “Dunkirk” (2017), de Christopher Nolan.
Contudo, os melhores serão, discutivelmente, aqueles que conseguem instigar ao pensamento sobre fenómenos tão nocivos e desumanos quanto a guerra em si, como, por exemplo, as retóricas judiciais assentes em bodes expiatórios ou a preparação militar. Disso falaram, respetivamente, “Paths of Glory” (1957) e “Full Metal Jacket” (1987), ambos realizados por Stanley Kubrick.
No seguimento desta visão, surgiram as adaptações do romance “A Oeste Nada de Novo”, a obra intemporal do alemão Erich Maria Remarque, veterano da Primeira Guerra Mundial. Lançada em 1929, a história acompanha um grupo de rapazes que, incentivados por um professor, se alistam para a “guerra gloriosa”, publicitada por falsos ideais de heroísmo e patriotismo, que pouco tardariam a ser refutados.
“Este livro não pretende ser nem uma acusação nem uma confissão, nem muito menos uma aventura, porque a morte não é uma aventura para quem a enfrenta cara a cara. Tentará simplesmente descrever uma geração de homens que, apesar de ter escapado aos bombardeamentos, foi destruída pela guerra.”
Erich Maria Remarque
A primeira foi a americana de 1930, realizada por Lewis Milestone, que, não beneficiando da liberdade para efeitos especiais sangrentos nem do primor técnico contemporâneo, desenvolveu um drama humanitário e frenético, à frente do seu tempo, tornando-se num clássico inquestionável. Adiante, sucederam meras versões televisivas. Nenhuma contada por alemães, nem tampouco munida dos apetrechos cinematográficos do século XXI, responsáveis por espetáculos de barbárie como “Hacksaw Ridge” (2016), de Mel Gibson, ou “1917” (2019), de Sam Mendes.
Escrita por Ian Stokell, Lesley Paterson e Edward Berger, a mais recente adaptação, original da Netflix e com inícios de rodagem em Março de 2021, em Praga e na República Checa, segue novamente Paul Bäumer e os colegas de secundário, de dezassete anos. Quais cavaleiros na boca dum tenebroso dragão, são os últimos reféns da máquina de propaganda nacionalista, linha da frente do exército que, como dita a História, pouco ou nada avançou na linha ocidental.
O que também não deverá avançar tão cedo é o discernimento do ser humano. Por conhecidas e infelizes razões, a guerra (e o magnífico cinema que dela tem nascido) deverá ser o mais fiel reflexo da crueldade e da irracionalidade do Homem. Prestes a verificar-se um ano da invasão russa da Ucrânia, é natural que um filme como “A Oeste Nada de Novo” configure uma espécie de catarse para o espetador europeu, com empatia por refugiados e soldados e histórias de pesadelos e sofrimento na sua árvore genealógica.
Por outro lado, não deixa de ser cansativo e até deprimente que se continue a notar a inconsequência e uma certa inutilidade da arte nas questões da Humanidade. Seria de esperar que, desde o Kaiser Wilhelm II, na Primeira Guerra Mundial, a Vladimir Putin, em 2023, o cerne dos conflitos se erradicasse ou, no mínimo, se alterasse. O que acontece, escusado será dizer, é uma repetição doentia e insignificante, uma carnificina sem cessar-fogo, onde reinam o narcisismo, a cobardia e o poder económico.
Contudo — não vá a apatia levar a nossa avante —, há que reconhecer que “A Oeste Nada de Novo” é um importantíssimo marco no género dos filmes de guerra, a começar, previsivelmente, pelos departamentos técnicos. Em pleno campo de batalha, os tracking shots de James Friend captam a longa e caótica correria do exército até uma promessa de morte e desespero. Recém-vencedor do Prémio BAFTA para Melhor Fotografia, este não se esquece dos intervalos sossegados nas trincheiras, nos abrigos amadeirados, nas planícies e nas montanhas nevadas.
Pontuados pela calma antes da tempestade — a banda sonora de Volker Bertelmann, também vencedor nos BAFTA, é magistral em ambos os sentidos —, é nestes espaços que as personagens, oriundas da inocência, vivem um dia-a-dia marcado por aborrecimento e pequenos prazeres.
Não com isto dizer que “A Oeste Nada de Novo” tem momentos redundantes ou tediosos. É um filme que reconhece a importância de personagens e do tempo que com elas os espetadores passam. Alguns poderão levantar o desenvolvimento insuficiente dalgumas, mas sublinhe-se que, similar ao que fez Christopher Nolan, Edward Berger extrai desta situação horrível — a guerra — uma natureza solitária, distante dos companheirismos idílicos e sensacionalistas a que Hollywood nos acostumou. No fim da luta, as trincheiras são palcos de medo e degredo, onde a prioridade jamais é substituir uma bandeira colorida por outra.
Não obstante, no filme abundam interpretações e personagens marcantes. Desta vez, Paul Bäumer é encarnado por Felix Kammerer, que exibe um belíssimo trabalho de ator no seu primeiro grande projeto, após uma breve carreira no teatro alemão. Ao duro e irónico Kat deu corpo e voz Albrecht Schuch, fonte dalgum humor, mas não menos sofrido. Já Daniel Brühl, o rosto mais internacional do elenco, conhecido por “Inglourious Basterds” (2009), de Quentin Tarantino, protagoniza um dos segmentos mais interessantes, do lado de quem negociou o armistício, em Novembro de 1918.
Edward Berger, com experiência sobretudo em televisão — realizou a minissérie “Patrick Melrose” (2018) e alguns episódios de “Your Honor” —, não só se superou, como também oferece uma obra de futura referência à sétima arte. Galardoado com os BAFTA de Melhor Filme de Língua Não Inglesa, Melhor Realização e Melhor Filme, “A Oeste Nada de Novo” é uma experiência audiovisual cozinhada no auge das capacidades de quem nela se envolveu, obrigatória para qualquer cinéfilo.
Além disso, talvez o seu maior triunfo seja relembrar que a guerra é este fenómeno sem vitória, sem sentido, sem fim. Tenta-se crer que aquilo que separa as guerras travadas há mais de cem anos e as da atualidade é um maior estado de alerta individual, do cidadão comum que se informa e resiste ao controlo de pensamento. No entanto, a lavagem cerebral de Vladimir Putin e doutros tantos continua a fazer mossa e não tão cedo será desligada da tomada.
Esta resistência ostentada no conforto de pequenos e grandes ecrãs pode muito bem, um dia, ser quebrada pela reinstalação de ameaças populistas, prontas a exigir mãos e facas banhadas em sangue. O término de cada uma não contemplará menos que milhões de homicídios, uma tragédia descomunal.