“A Piece of the Action”, de Sidney Poitier: quando o cinema explora a dura realidade de forma leve
Mais conhecido como actor do que propriamente como realizador, Sidney Poitier foi o primeiro actor negro a ganhar um óscar de melhor actor num papel principal (1963), tendo tido uma infância pobre e repleta de dificuldades. “A Piece of the Action” (1977) é o quinto filme que realizou, contando com um elenco de luxo onde além do próprio Poitier também Bill Cosby e James Earl Jones têm papéis principais.
Aparentemente mascarado como uma comédia leve onde dois vigaristas executam um grande roubo a dois mafiosos, “A Piece of the Action” tem muito mais detalhes do que os primeiros minutos nos mostram. Após serem chantageados por Joshua Burke (James Earl Jones), um policia que se acabou de retirar, Many Durell (Sidney Poitier) e Dave Anderson (Bill Cosby), dois vigaristas, são então obrigados durante cerca de 5 anos a fazer voluntariado numa associação que se concentra em ajudar jovens problemáticos. Caso não cumpram este objectivo, Many e Dave serão entregues à justiça, onde passarão muito mais que apenas 5 anos atrás das grades. Após mil e uma peripécias, Many e Dave ajudam a associação e muitos dos seus jovens, encontrando no final uma espécie de união entre todos.
O ponto forte de “A Piece of the Action” é a sua sobriedade, a forma como todos os elementos cinematográficos se combinem de forma sólida. Poitier criou um ambiente próprio, a transbordar de elementos dos anos 70, desde a música de dança ao guarda fato cuidado, carros, movimentos estilisticos, etc. Estamos nos anos 70 e além de virmos isso, ouvimos também. Poitier domina todos esses elementos como ninguém e pelo meio consegue criar uma narrativa que conjuga tudo o resto, os personagens aos locais, a acção ao drama, a montagem ao ritmo. No fundo, este filme é um retrato social sobre as dificuldades de se crescer num meio pobre e sem grandes apoios, tentando utilizar os dois vigaristas como exemplo de sucesso e não como vilões, ao contrário do que a maioria dos filmes do género faz.
Há uma cena particularmente comovente durante as aulas de procura de trabalho que Many ensina na associação, onde um dos jovens problemáticos fala sobre o seu irmão que te uma deficiência e sobre o facto da sua mãe ter perdido o trabalho. Nesse momento todos os jovens da sala sentem a sua dor, pois essa dor é o que os une, embora todos tentem mascara-la com atitudes mais infantis. O filme procura essencialmente explorar a forma como nem tudo o que parece é, como as classes sociais não explicam o que somos nem de onde vimos, como a nossa riqueza ou pobreza não ilustra totalmente a nossa essência. O constante conflito entre os jovens e a professora é nada mais do que uma luta de classes a céu aberto, embora a personagem de Many tente explorá-la de forma diferente, no fundo ele é alguém que conhece bem as ruas e as dificuldades destes jovens, apesar de aparentar riqueza e toques de alta sociedade.
É verdade que existem momentos menos bem conseguidos, mais propriamente em certas montagens de cenas que cortam um pouco o ritmo do filme. A certo momento sentimos que os jovens são o foco principal, mas na cena seguinte passamos para o lado mais cómico de acção onde as vigarices assumem maior protagonismo. No fundo, este “A Piece of the Action” é bastante idêntico ao “The Sting” (1973) de George Roy Hill, com Paul Newman e Robert Redford a assumirem o papel de vigaristas. A grande diferença entre ambos é que “The Sting” apresenta muito maior solidez na sua vertente de acção/comédia do que “A Piece of the Action”, apesar de ser menos emocional.
“A Piece of the Action” é um filme que ficou meio perdido no tempo, talvez fruto das acusações de Bill Cosby (condenado por crimes sexuais) ou simplesmente porque Sidney Poitier nunca teve uma enorme obra que o identificasse como grande realizador. A verdade é que há muito mais para descobrir nesta obra do que a sinopse oferece e em 2020 este continua a ser um filme relevante dos anos 70.