“A Plataforma”, um retrato dos nossos dias
O timing de difusão pela Netflix foi certeiro e os paralelismos com os tempos que correm, onde o verbo açambarcar está na ordem do dia, são inevitáveis. Pode dizer-se que A Plataforma, – ou El Hoyo, no título original – filme de Galder Gaztelu-Urrutia, acertou acidentalmente na actualidade e na urgência da sua estreia. Infelizmente têm sido várias as fotografias de estantes de supermercado vazias nas últimas semanas, muitas delas causa de algum alarmismo (desnecessário ou não é outra questão que agora não importa ter), mas sobretudo de um egoísmo perante o próximo. O individualismo na sua pior demonstração.
A Plataforma é um confinamento, uma prisão em forma de experiência social com 333 níveis onde em cada um deles estão dois prisioneiros que são alimentados através de uma plataforma com comida que vai descendo desde o primeiro nível até ao último, parando apenas breves segundos em cada um. Ou seja, do primeiro para o último nível ficarão os restos de comida deixados por quem está nos níveis acima e todo o desespero que essa situação possa gerar de forma a potenciar o que de pior há no ser humano.
A prisão é uma clara alusão e alegoria à estratificação da sociedade por classes, onde as mais beneficiadas estão – como sempre – acima de todas as outras, no sentido literal ou figurativo. Em vez de racionarem, para que a comida chegue a todos os níveis da prisão, os prisioneiros comem de forma abrupta e acima do necessário, com medo de que no dia seguinte acordem num nível inferior onde passarão fome por os que estão acima fazerem exactamente o que eles fizeram. Um ciclo vicioso e um pensamento corrosivo; uma luta interna de cada um que revela o pior da nossa natureza. Numa das cenas temos mesmo as pessoas do nível acima a prometerem ajuda à de nível inferior para logo de seguida lhe defecarem na cara. Sim, quem está acima “está-se a cagar” para os que estão abaixo de si e o filme não quer deixar de nos dizer isso de forma clara e literal.
O que a experiência nos quer ensinar é relativamente simples: com altruísmo – a chamada “solidariedade espontânea” ao longo do filme -, a comida chegaria para todas as pessoas, mas tem de haver algo ou alguém que as demova dos seus hábitos egoístas e egocêntricos para, num movimento colectivo e disruptivo, criar uma ordenação nessa sociedade que ali se constitui. A ideia desta necessidade da comida ser racionada ao ponto de conter as calorias necessárias para cada um é de Imoguiri, uma das colegas de cela de Goreng, o nosso personagem principal interpretada por Iván Massagué (“goreng” que por curiosidade, significa “frito” em algumas línguas).
Todos os prisioneiros podem escolher um objecto a levar para a prisão. Se o objecto escolhido pela maioria é uma faca, ou algo para protecção pessoal, Goreng escolheu um livro, “Dom Quixote de la Mancha”, fruto da sua natureza de busca pelos porquês, e por questionar o sistema onde se vê envolvido. Ao longo deste périplo são vários os simbolismos com que nos vamos defrontando representados através dos outros prisioneiros. De Trimagasi (que representa a Lógica, através dos seus “obviamente”) a Baharat (que representa a Fé) até uma descida aos últimos níveis por parte de Goreng e este último, na busca da consciencialização social, que nos faz ir deparando com as sete pecados mortais (representados das mais variadas formas pelos prisioneiros ao longo dos níveis, e que terá muito mais piada se cada um de nós for analisando por si mesmo, daí que não haja prazer em dizê-lo neste texto).
Da mesma linha de Snowpiercer, filme de 2013 realizado por Bong Joon-ho (o mesmo de Parasitas), A Plataforma é um filme necessário aos olhos de hoje, repleto de indicações de como a sociedade poderia e deveria ser mais justa e solidária, e de como seria necessário um movimento colectivo iniciado por algo ou alguém para que chegássemos a esse resultado. Concorde-se ou não, são traços de paralelismo com os dias de hoje sobre os quais deveríamos reflectir nos tempos que passam.
No entanto, A Plataforma é um filme cujo guião nunca consegue acompanhar o seu impacto visual e físico, sendo também um filme que nessa sua falta de savoir faire deixa demasiadas pontas soltas e planos de interesse por explicar, nomeadamente o “porquê” e “por quem” a criação daquela prisão e, sobretudo, um final insatisfatório. Quem é Goreng e o que fez? Porque está ali? São pontos interessantes sobre que pensar, mas há pouco sumo à sua volta e vários desleixos narrativos. É um filme que revela os seus pontos positivos na sua actualidade e nas analogias mas que se perde na falta de qualidade de muitos diálogos e que com tanto simbolismo acaba por “tapar a cabeça mas destapar os pés”. Apesar disso, trata-se de um filme urgente, necessário e imediato, interessante no aspecto principal da sua abordagem e que nos faz reflectir, destinando-se assim a ser falado durante muitos anos de forma meritória.