A poção mágica dos The Limiñanas com ‘Shadow People’
Pensem naquelas músicas icónicas que Quentin Tarantino retirou do baú para construir as suas bandas sonoras e cuja presença ajudou a fazer de Reservoir Dogs ou Pulp Fiction grandes clássicos. Imaginem também todas as celebradas e inesquecíveis imagens desérticas de road movies americanos como o incontornável Easy Rider. Idealizem agora uma poção mágica que alie a esses elementos cinematográficos as guitarras psicadélicas do acid rock dos anos 60, a electrónica crua e a percussão primitiva do krautrock, o pop experimental de Serge Gainsbourg, e ainda, embora com uma menor presença, toques vocais graves alusivos a um Tom Waits ou a um Mark Lanegan. Conseguiram captar tudo? O resultado dessa enorme mistura seria provavelmente algo como os The Limiñanas.
Lionel e Marie Limiñana são oriundos da localidade francesa de Perpignan e executam este estilo ecléctico de música com uma classe que é não só atraente mas também contagiante. Shadow People, o seu quinto álbum de originais, vê-os a continuar a abusar das fórmulas que já tomam como suas desde 2010, e tal até poderia ser um argumento contra a sua qualidade, mas há todo um universo a explorar dentro do grande género onde se inserem, e, quando as composições do grupo são tão envolventes, percebe-se que isto é algo que eles continuam a fazer com qualidade. Observe-se a bela faixa de abertura que é “Ouverture.”: os seus teclados entram de rompante e desde logo anunciam a chegada do duo com excelente compostura, ao passo que o baixo instala um groove convidativo, complementado pelo riff de guitarra que de uma assentada desperta nos ouvintes imagens mentais de cenários que se enquadrariam perfeitamente num western moderno. Poder-se-á dizer que isto não é nada a que a banda já não nos tenha habituado, mas também nunca terão soado tão joviais desde que começaram a sua jornada.
Os The Limiñanas revelaram um excelente trabalho naquilo que diz respeito ao processo de seleccionar as várias vozes convidadas para participar no disco: cada um dos artistas aqui presentes comunica bem com aquilo que a sua paleta sonora pede. “Istanbul Is Sleepy” conta com a contribuição de Anton Newcombe, e o seu registo, por vezes idêntico ao de Iggy Pop nos primeiros discos que fez sem a companhia dos The Stooges, estabelece uma boa parceria com a percussão simplista e os ritmos sedutores que o acompanham. A poderosa Emmanuelle Seigner aparece na faixa-título, que, nunca se desviando da típica estrutura da qual os The Limiñanas gostam de fazer uso, é uma das mais eficientes e memoráveis faixas. Bertrand Belin, no entanto, será o mais forte do leque: o seu spoken word sereno em “Dimanche” contrasta de forma esplêndida com a catarse que por detrás dele se faz ouvir, ajudando a construir uma viagem psicadélica com passagem obrigatória pelo vintage pop francês que é um dos grandes destaques de Shadow People.
Nalgumas dessas viagens, pode ver-se que Lionel e Marie não têm quaisquer problemas em deixar transparecer as suas referências. “Pink Flamingos” quase parece um piscar de olho aos Air, dado que, tivessem Nicolas Godin e Jean-Benoit Dunckel escrito este tema, não se teria estranhado a sua presença no melódico e relativamente acessível Talkie Walkie. “Le Premier Jour”, por outro lado, parece directamente saída de Histoire de Melody Nelson, obra do já mencionado Serge Gainsbourg: o registo baixo mas profundo de Lionel lembra de imediato esse que é um dos seus grandes mestres, ao passo que o infinitamente repetido acorde de guitarra reverberado e os teclados criam um ambiente imersivo ao qual poucos passam indiferentes.
A imersão de que se fala é muitas vezes conseguida com recurso à repetição, e, consoante as várias circunstâncias, esta opera tanto a favor como contra a banda. Se, por um lado, não é difícil de verificar que poucas são as músicas em Shadow People que apresentam grande progressão temática, o duo também é capaz de encontrar no intencional uso exagerado dos seus motes o caminho para a construção de uma atmosfera sui generis, que confere a este álbum o seu brilho. Para além disso, Lionel e Marie equilibram muito bem as colaborações dos seus convidados especiais com as passagens mais instrumentais do disco, e as últimas culminam nalguns dos melhores momentos de um produto final que é coeso e lógico em vez de desconcentrado (“Motorizatti Marie”, por exemplo, empolga pelo seu ataque cavalgante e mostra os The Limiñanas no seu estado mais inspirado). A jornada traçada raramente parece sufocada pela diversidade de géneros convocados, e desenvolve-se com naturalidade. Como um bom filme.