A Primavera chegou nos tons da música persa, afegã, cazaque e uzbeque
Entre os dias 30 de Março e 1 de Abril, a Fundação Gulbenkian recebeu concertos de música persa, afegã, cazaque e uzbeque no âmbito do Festival Noruz. O que têm estas etnias em comum e de onde vem este nome? Nos seus territórios, celebra-se o Noruz, o evento de Ano Novo persa que ocorre no equinócio da Primavera. Esta é uma celebração que, como contou Ariana Vafadari, uma das artistas que actuou no primeiro dia, tem origem na religião zoroastriana e é observada pelos seus antepassados há 4000 anos. Em tempos conturbados de guerra e desordem, nada melhor que exaltar este histórico feriado, transversal e sem fronteiras, unindo as pessoas através da música.
Tendo em conta a origem do Noruz, foi certeira a aposta de começar o festival com uma noite dedicada à música persa. No comando, estiveram as franco-iranianas Farnaz Modarresifar e Ariana Vafadari, que deram concertos seguidos, acompanhadas de outros músicos. Enquanto uma favoreceu a improvisação, a outra virou-se mais para canções formadas, ocasionalmente centenárias. Uma apresentou-se de forma modesta e sem troca de palavras com o público, enquanto que outra fez algumas apresentações antes das canções e foi o centro das atenções com um elegantíssimo vestido vermelho. No entanto, o que mais marcou a dupla de concertos foram as similitudes: a contenção e o uso do silêncio, a reverência pela música e o retinir dos instrumentos de cordas, cuja estridência acolhedora tem o poder de nos transportar para um outro lugar.
Farnaz fez-se acompanhar de Haïg Sarikouyoumdjian, músico arménio e prodígio do duduk, um instrumento de sopro originário do seu país. O foco da performance de meia hora, sem pausas, fluiu entre um e outro. Os artistas davam tempo um ao outro para explorar cada instrumento, progredindo de discretas notas para belíssimos floreados que pareciam materializar-se a partir do éter.
Logo no início, enquanto Farnaz martelava docemente o seu santur — um dulcimer de origem iraniana — um tom monótono saia do duduk de Haïg. Quando Farnaz terminou a experimentação, após um momento de silêncio de duração perfeita, foi a vez de Haïg soprar um conjunto de notas de levar às lágrimas, de tão belo que era. Foi arrepiante e surpreendente, como se o som tivesse saído do chão, passado por dentro de cada um de nós e subido até ao infinito, como um sinuoso rasto de fumaça que não desaparece. Foi assim ao longo dessa meia hora (que passou a correr), um vai e vem de melodias que bailavam em harmonia.
O concerto, para além de provocar estes devaneios metafísicos, foi também um estudo de timbre e velocidade, particularmente através do som metálico do santur. À ressonância de notas prolongadas para servir de base, sucediam-se sequências de notas tocadas em catadupa, explorando a dualidade do trance que esta música espiritual parece induzir, seja pela repetição ou pela variação alucinante de tons, reminescente de um certo psicadelismo.
O curto intervalo entre os concertos trouxe um momento caricato. Após a saída de Farnaz e Haïg do palco, entraram quatro pessoas, recebidas com aplausos do público. Pouco depois, percebeu-se que estavam lá não para actuar, mas sim para retirar a parafernália do concerto anterior e abrir espaço para o seguinte. Os aplausos foram substituídos por risos e, posteriormente, por mais uma chuva de aplausos, como um sincero, apesar de inadvertido, agradecimento aos técnicos que colaboram na produção destes espectáculos.
Ariana Vafadari é mais reconhecida pela sua carreira como meio-soprano, integrando espectáculos de ópera e outros concertos de música erudita. Nesta noite, para o público do Grande Auditório da Gulbenkian, conectou-se às suas origens persas, como já havia feito no álbum que lançou em 2016: Gathas, Songs My Father Taught Me, um conjunto de canções ancoradas na filosofia e poética zoroastrianas. Tanto que, antes de apresentar a terceira canção do alinhamento, nos contou que narra um episódio do próprio fundador da religião zoroastriana, Zaratustra, e da sua filha.
A voz imaculada de Ariana tem o alcance que se espera de alguém que canta ópera e uma técnica virtualmente impecável. Mas, para além disso, tem uma versatilidade dramática que lhe permite transmitir um variado leque de emoções ou sensações: sensualidade, confiança, comedimento, reverência, melancolia… enfim, tudo é possível nestas canções que narram lendas, ensinamentos milenares e outras histórias.
Quem a acompanhou em palco foi o alaúde de Yacir Ramid e a percussão de Keyvan Chemirani. Apesar de ser ela o foco das atenções, partilha-o de bom grado com estes dois virtuosos músicos, mais uma vez dando espaço a solos que exploram os limites sónicos de cada instrumento. Particularmente, destacamos o esmerado momento ASMR que Keyvan nos proporcionou com o zarb, um membranofone de som versátil e o principal instrumento de percussão da música persa. Tanto batia, como beliscava, arranhava ou tacteava a membrana com os dedos, entrelaçando texturas sonoras a uma velocidade inacreditável. Não admira que tenha recebido uma pequena ovação logo de seguida.
O segundo dia deste inventivo Festival Noruz foi também bipartido em dois espectáculos, dedicados à música cazaque e à música afegã.
Foi a convite de Homayoun Sakhi, protagonista do segundo concerto da noite, que Ulzhan Baibussynova e Aigerim Yersainova subiram ao palco para uma pequena amostra da música cazaque. Pela forma como o concerto foi conduzido, realmente pareceu uma pequena aula. Aigerim começou por apresentar-se a si e à sua colega de palco, e depois os instrumentos que tinham. O primeiro foi o shankobyz, um pequeno aparelho de metal que Aigerim colocou na boca, deixando uma ponta para fora que beliscava levemente, criando um som vibratório muito característico. Usando a própria cavidade oral para ressonância e a mão livre para modelar as ondas de som que se formavam, o som variava impressionantemente.
O shankobyz ficou de lado para o resto do concerto, abrindo espaço ao rústico “violino” kobyz, também tocado por Aigerim. Considerado um dos instrumentos de arco mais antigos do mundo, era tocado pelos nómadas que navegavam pelas estepes do actual Cazaquistão já no século VII. Com apenas duas cordas e um corpo escavado a partir de um único pedaço de madeira, o seu som é emotivo e naturalista. Acompanhou o dombra de Ulzhan, que é um alaúde cazaque de timbre gentil, que evoca os tons da música medieval.
Esta foi a base instrumental para o peculiar estilo de cantar de Ulzhan, que segue a linha dos épicos cantores zhyrau. Cantando longos poemas com poucas pausas, a sua voz nasalada e plena de vibrato natural pode não ser a mais agradável de ouvir, mas a emoção que transmite é inegável. O estilo musical, anteriormente reservado apenas aos homens, nas suas mãos e cordas vocais toma um poder e confiança incomparáveis.
De seguida, foi então hora de Homayoun Sakhi tomar o palco, acompanhado do percussionista Siar Hashimi. Ambos se sentaram no chão e tomaram uns minutos para ajustar os instrumentos até soarem na perfeição, contribuindo para um ambiente intimista e casual de uma sessão de improvisação. Queríamos, como eles, estar sentados numa carpete, próximos dos artistas, particularmente quando Homayoun começa, ao de leve, a demonstrar os seus dotes no rubab, um alaúde que parecia uma peça de museu. A delicadeza do dedilhar das cordas, que foi ficando consistentemente mais complexo, era de levar às lágrimas.
Ao longo de cerca de meia hora sem pausas, Homayoun e Siar destilaram um estilo devocional ao nível dos ragas indianos, mas com um twist moderno que apelido carinhosamente como “raga progressivo”. A certa altura, era como se estivéssemos a ver o Jimi Hendrix do rubab, alucinantemente saltitando de nota em nota em progressões tocadas como se o instrumento estivesse a arder. O público abanava a cabeça, acompanhava o ritmo da tabla com palmadas nas pernas e parecia irrequieto. Cada pequeno grande solo merecia uma salva de palmas, mas o duo não parou em momento algum.
Na segunda meia hora, o estilo foi ainda mais brincalhão e melódico. As improvisações angulosas iam acelerando de acordo com os caprichos dos músicos, parando repentinamente depois dos momentos mais épicos, numa sincronia impressionante. Mesmo que as técnicas já começassem a soar familiares, havia sempre alguma maneira de Homayoun nos surpreender, fazendo-o com um sorriso nos lábios de genuína felicidade. No final, convidou as artistas cazaques para um último momento musical em conjunto, cantando com Ulzhan e ainda com a terceira “voz” do komuz, que soava a um sábio ancião, emprestando mais profundidade à divertida música. Foi um bonito momento de comunhão perfeitamente adequado ao carácter transversal do Noruz.
O último dia foi dedicado à música uzbeque, proveniente do território milenar que é palco do cruzamento de inúmeros povos desde os tempos da Rota da Seda, numa sublimação das tradições do Médio Oriente e Ásia Central. Para a representar, subiram ao palco Yulduz Turdieva e o seu ensemble. Na sua carreira a solo, a artista faz música mais moderna e dançável com um toque de música tradicional, num estilo que a transformou numa autêntica diva no Uzbequistão. Neste concerto, o foco foi realmente a música erudita e a tradição, que se aproximou dos sons persas da primeira noite de festival.
A voz melodiosa de Yulduz não quebrou ao longo dos 90 minutos de espectáculo, altamente celebrados pela plateia praticamente esgotada. O concerto desenvolveu-se em crescendo, começando com os tons tranquilos do ghijak de Umid Vokhidov e do tambur de Uktamjon Rasulov, acompanhados da leve percussão do doyre de Rustamojon Tagaykulov e do daf de Ulugbek Temirov. O ritmo foi aumentando até metade do concerto, pontuada pela dança típica uzbeque protagonizada por Durdona Ismanova. Maquilhada e sorrindo de uma forma quase caricatural, ocupou quase todo o comprimento do palco, rodando e agitando os braços como uma mariposa, conferindo uma leveza extra à música.
A certa altura, já perto do final, os instrumentos de cordas são postos de lado e cada músico pega no seu pandeiro (os doyres e os dafs). A overdose de ritmo leva a que o final do concerto seja feito mais próximo da boca de palco, com todos os artistas em pé, pedindo que o público cante e aplauda ao seu ritmo infeccioso. Flores multiplicam-se em palco, quer nas mãos de Yulduz e Durdona, quer na projecção que serve de pano de fundo. A música continua na despedida, com os músicos tocando até saírem da nossa linha de visão, ecoando pelos bastidores, sugerindo a infinitude desta tradição que é o Noruz. Finalmente, é Primavera!