A propósito das declarações do Sr. Cardeal Patriarca
Ficcionista, ensaísta, poeta, tradutor, Frederico Lourenço nasceu em Lisboa, em 1963, e é actualmente professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Traduziu a Ilíada e a Odisseia de Homero.
Lembro-me que, na minha adolescência católica, o conflito entre os apelos contraditórios da volúpia e da espiritualidade acabava sempre com a vitória da segunda sobre a primeira. Deus era tudo para mim. Na altura, eu sentia uma fé tão avassaladora que os parcos episódios de sensualidade por mim experimentados se me afiguravam meros acidentes de percurso: não afectavam em nada o meu projecto de entrega total a Deus. Graças ao romantismo próprio de todos os adolescentes, decidi, logo após as primeiras experiências eróticas empreendidas sob o signo da curiosidade, que se o sexo era de facto pecado mortal, só valeria a pena incorrer na pena da condenação divina se ambos os intervenientes estivessem verdadeiramente apaixonados. E vejo hoje, retrospectivamente, que estes ideais de romantismo e de espiritualidade me ajudaram a salvaguardar «qualquer coisa», que não sei bem dizer o que é; a adiar por mais uns anos experiências que, para um adolescente, teriam sido prematuras.
Devo dizer, apesar de tudo, que o choque dentro de mim entre sexo e religião foi bastante mais suave do que no caso de muitos amigos meus, cujos testemunhos eu viria a ouvir mais tarde. É que, no íntimo de mim, não conseguia (nem consigo) entender por que razão a sexualidade, criada por Deus, é ofensiva aos olhos de Deus.
Entendo e aprovo que exista uma barreira intransponível entre a sexualidade abusadora e a experiência religiosa: que qualquer acto sexual assente na violação ou exploração de outrem seja contrário à vontade de Deus, na medida em que esta parte, como é do consenso geral, da própria dinâmica do amor, do altruísmo, da dádiva generosa, da confraternização afectuosa entre as pessoas.
Mas havendo respeito absoluto pela dignidade de outrem e o reconhecimento do direito inalienável de cada ser humano à volição livre no que toca ao seu próprio corpo, não creio que a intimidade voluntária entre pessoas adultas (de sexos opostos, do mesmo sexo, solteiras, casadas, divorciadas ou recasadas) se destitua automaticamente de espiritualidade por ter uma dimensão sexual.