A revolução do cinema no Irão faz-se no feminino
A realizadora iraniana Farnaz Jurabishian, a produtora Elaheh Nobakht, e a cineasta indiana Sreemoyee Singh dão voz aos ventos de mudança.
Há uma revolução feminina em curso no Irão. São elas que tiram o hijab no meio da rua e protestam pelos seus direitos mais básicos e também pegam numa câmara para documentar a realidade do país. Esta é uma geração bastante promissora de realizadores e produtores que tem do seu lado a juventude aliada à memória do sempre vibrante cinema iraniano.
Durante o recente festival de documentário, MDOC – Festival Internacional de Documentário de Melgaço, de 31 de Julho a 6 de Agosto, tomamos contacto com um conjunto muito interessante de cineastas, com a particularidade de auscultarem de uma forma atenta e expressiva a vibração que se sente em alguns setores desta sociedade patriarcal, bloqueada por sanções internacionais. Desde logo, impressionou a escavação da memória familiar e do passado do Irão operada por Farnaz Jurabichian, no muito conseguido Silent House, de resto, um filme vencedor do prémio Dom Quixote; ou quando a dança e as canções se calam e cedem espaço à arma automática em combate por uma causa, como sucede no avassalador Dreams Gate, de Negin Ahmadi. Por sinal, ambos filmes produzidos pela jovem Elaheh Nobakht. Tivemos a oportunidade de falar com ambas, em Melgaço, em que descobrimos alguns dos valores desta nova vaga do cinema persa. Como a indiana Sreemoyee Singh, natural de Calcutá, rendida à poesia e aos valores por que lutam as mulheres no Irão. Algo que exprime no maravilhoso filme And, Towards Happy Alleys, igualmente apresentado no festival, documentando a sua experiência pessoal, em que esta se confunde com as sementes de contestação que germinam em Teerão. É nesta sociedade eminentemente patriarcal que contornam as dificuldades na defesa de uma liberdade criativa que lhes diz diretamente respeito.
Além destas, deixaram ainda a sua marca duas curtas intensas: I was Born in 1988, de Sreemoyee Singh, e Three Sisters, de Iman Behrouzi, a primeira cruzando a data do nascimento da realizadora com o ano em que ocorreu no Irão uma série de execuções de prisioneiros políticos, na sequência da guerra entre o Irão e o Iraque, e a segunda, na evocação do local onde três irmãs adultas decidiram cometer um suicídio coletivo.
Aproveitámos a presença de novos talentos que parecem ter já um destino de aceitação traçado, como Farnaz, Elaheh e de Sreemoyee, para auscultar em discurso direto os seus anseios, preocupações e, acima de tudo, as motivações criativas e vontade de mudar o statos quo no Irão.
Há ainda um elemento de curiosidade que torna este encontro ainda mais urgente. Sobretudo após o impacto que tivemos com o trabalho de Bahram Beyzaie, considerado um percussor da revolução iraniana, apenas algumas semanas antes, em Bolonha, onde dois filmes seus — Gharibeh Va Meh/The Stranger and the Fog (1976) e Tcherike-ye Tara/Ballad of Tara (1979) — foram considerados as maiores descobertas contexto do festival Il Cinema Ritrovato. Sobretudo porque dois dias mais tarde haveríamos de contactar, já no festival de Karlovy Vary, com um valioso showcase de nove filmes do novo cinema iraniano, intitulado Another Birth. Iranian Cinema, Here and Now, incluindo alguns filmes que poderão dar que falar. E onde esteve presente Dream’s Gate. Falamos de Black and White Rive, de Farzin Mohammadi, Creation between Two Surfaces, de Hossein Rajabian, K9, de Vahid Vakilifar, Locust, de Faezeh Azizkhani, No End, de Nader Saeivar, Zapata, de Danesh Eghbashavi, bem como a estreia dos irmãos Bahram e Bahman Ark, com The Skin, e ainda Trip to the Moon, de Mohammadreza Shayannejad’, uma outra estreia.
Não deixa de ser curioso que o nome da mostra seja replicado da obra da poetisa Forough Farrokhzad, autora de um único filme, o documentário The House is Black, de 1963, de apenas 21 minutos, considerado como um dos filmes inspiradores da nova vaga do cinema iraniano/persa, ainda hoje uma referência incontornável no Irão.
A Casa é delas
Apesar do tema de Silent House ser muito distinto, é muito difícil não pensar numa certa homenagem a Forough. Pelo menos, do ponto do elemento feminino daquela que é a casa da família de Farnaz Jurabichian (mas também do seu irmão Mohammadreza, co-realizador do filme) há mais de um século. Uma morada pertencente a uma das mulheres do Xá Reza Pahlavi, entretanto adquirida pelo seu avô, um abastado comerciante de Teerão. “Ela era a sua preferida”, conforme nos confessa Farnaz, em Melgaço. E onde confirma que terá mesmo ocorrido um encontro não oficial entre Roosevelt, Stalin e Churchill, os chefes de estado das potências vencedoras da 2.ª Guerra Mundial.
“Pensámos na casa quando começámos o filme”, revela-nos. “Uma casa que esteve sempre a observar esta família. E que é quase uma âncora do próprio Irão”. Na altura imaginando a possibilidade “se as paredes pudessem falar…”, como que evocando outras almas, outros eventos. “De início, queríamos deixar que a casa falasse, depois que fosse a família a falar da casa; no final, eu e o meu irmão decidimos que a intenção deveria partir de nós próprios, por forma a analisar as diferentes gerações no contexto do Irão de hoje. Deveríamos criar um sentido a isso tudo”, sublinha. No entanto, Farnaz está consciente de que pertence “a uma geração mais nova que quer algo novo. Que quer viver a sua própria vida”. Algo que considera muito importante, pois entende que “em vez dos jovens serem confrontados, deveriam ser ouvidos.”
A produtora Elaheh Nobakht aposta há muito na afirmação dos novos valores no cinema do Irão. “Eles são muito talentosos e têm uma grande preocupação sobre o que se passa no mundo”, como nos confessa. E apesar de ser um país muito afectado pelas sanções internacionais, esta produtora de 36 anos, tem já atrás de si um trabalho de 16 anos. Confirma que tem “gosto de descobrir novos nomes que desejam partilhar os seus sonhos de uma forma artística. Tento selecionar projectos com uma profundidade sobre aquilo que se passa em seu redor. É por isso que trabalho mais com uma geração mais nova.”
Como sucedeu em Dream’s Gate, de Negin Ahmadi, um filme com cinco anos de gestação (tal como Silent House), sobre uma milícia curda composta apenas por mulheres. Relata a produtora que recebeu da realizadora um vídeo de 2 minutos feito com um iPhone: “este excerto foi, para mim, uma descoberta. Mas também para a minha vida pessoal”. Segundo Elaheh, algumas imagens estão no filme, que nos mostra tando esse grupo de jovens a cantar e a dançar, mas igualmente a pegar em metralhadoras e assumir um combate feroz na frente de batalha.
“Fiquei comovida com a conjugação de esses diferentes aspetos da vida”, diz-nos. “É que, ao mesmo tempo querem estar bonitas, e serem mulheres, mas não descurando a sua missão.” Ou seja, a sua condição feminina. “Interessa-me continuar a trabalhar nesta área, no Médio Oriente, e focar-me nas questões femininas, os seus desafios e de que maneira procuram fazer a diferença no seu mundo.” Mesmo que Elaheh considere que as mulheres vivem uma situação de enorme solidão. Mas apesar de tudo há otimismo: “Espero que algumas possam ver aqui algum sentido de esperança. Acho que estes filmes podem afectar mulheres e pessoas diferentes em outros pontos de mundo.” Por isso, sintetiza: “Acho que estes novos cineastas vão conseguir trazer coisas positivas. Desde logo no que diz respeito a direitos humanos, a igualdade e às escolhas pessoais na vida de cada um.”
É belíssima a forma como a muito jovem indiana Sreemoyee Singh, de Calcuta, encara o cinema, em And Towards Happy Alleys, apresentado em estreia mundial no passado festival de Berlim. Não será um pormenor referir que Sreemoyee aprendeu farsi em três meses. Mesmo pela proximidade da língua bengali e hindu às raízes persas. Seja como for, a sua mudança de vida aconteceu aos 21 anos, durante um módulo de cinema iraniano na universidade. O suficiente para lhe abriu o olhar, não só para a poesia de Forough, mas também, naturalmente, Ebrahim Golestan, como ainda o cinema de Abbas, Kiarostami, Moshen Makhmalbaf ou Bahman Ghoubadi, entre tantos outros.
Quando encara o seu projeto de doutoramento, foca-se nos cineastas exilados no Irão após o período revolucionário. “O meu filme é sobre isso mesmo: sobre a expressão, o pensamento, a arte. Nesse sentido, observa como uma comunidade de iranianos luta pelos seus direitos no dia-a-dia. Como reivindica uma liberdade para se exprimir.” Em particular observa Jafar Panahi, bem como várias mulheres activistas. “Porque cada dia é uma jornada de luta. Foi o que tentei captar no filme, e perceber como a liberdade lhes é retirada.” Este foi um projecto realizado ao longo de sete anos. Aqui se documenta “o dia a dia da rebelião das mulheres, mostrando diversos atos extremos de mulheres. Mas relatar que foi isso que levou ao momento que vivemos hoje em dia.”
No final, fica a imensa vontade de conhecer ainda mais o cinema — das raízes às novas sementes — deste país do Médio Oriente. Pois foi um prazer conhecer a vossa Casa.