A saga familiar de Leïla Slimani em “O País dos Outros”

por Miguel Fernandes Duarte,    22 Junho, 2021
A saga familiar de Leïla Slimani em “O País dos Outros”
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Primeiro volume de uma futura trilogia, O País dos Outros, o mais recente livro da franco-marroquina Leïla Slimani, é, reconhecidamente, um retrato da sua própria família – a história de Mathilde e Amine é a história dos seus avós. 

Mathilde, nascida e criada em Mulhouse, na francesa Alsácia, conhece Amine, nascido e criado em Meknès, Marrocos, soldado do exército colonial francês na Segunda Guerra Mundial. O encontro, e posterior paixão, dá-se quando o regimento de Amine liberta Mulhouse, e, ao acabar a guerra, Mathilde deixa a sua terra natal para viver na quinta que Amine, agora seu marido, herda de seu pai, nos arredores de Meknès. 

Ambicioso, Amine tenciona transformar essa propriedade rochosa num latifúndio produtivo, recorrendo para isso ao conhecimento que vai adquirindo na botânica e na agricultura. Rodeado de enormes propriedades coloniais, é com condescendência que é olhado pelos vizinhos franceses, que, mesmo gabando-lhe a ambição, não vêm nem no terreno rochoso nem no seu dono o potencial de desenvolvimento. Como poderia um marroquino ser capaz de fazer o mesmo que eles?

É neste ambiente que Mathilde aterra pelo seu amor, uma quinta árida, isolada, um homem que não compreende os seus hábitos franceses e que, tendo-se apaixonado por ela, está constantemente a trabalhar nos seus terrenos e não lhe reconhece autoridade para mais que cuidar da casa e dos filhos que nascem entretanto.

Leïla Slimani / Francesca Mantovani

É fácil reconhecer em O País dos Outros os seus principais temas, desde o sentido de deslocação que Mathilde sente – vista pelos marroquinos como francesa e, ao ter casado com um marroquino, pelos colonos franceses em Marrocos como selvagem – às questões familiares, nomeadamente o difícil conciliar daquilo que são as nossas paixões com aquilo que acarreta a vida em casal, ainda mais num contexto altamente patriarcal como o era a Marrocos dos anos 50 do século passado.

Mas se o próprio título diz directamente respeito à tal estranheza que Mathilde sente por estar num país e numa cultura que não é a sua, é também uma referência ao país que deveria ser dos marroquinos, mas é, afinal, dos colonizadores franceses. Estamos no período pré-independência, quando começam as lutas de libertação, período de tensão e violência crescente entre marroquinos e franceses. 

Personagem importante nesses confrontos é Omar, irmão de Amine, para quem olha com um certo desdém. Afinal de contas, Amine era visto pela família como um herói de guerra por ter combatido ao lado daqueles que oprimiam o povo marroquino. É parte desse desdém que alimenta o empenho de Omar nas lutas de libertação, a sua vontade de se mostrar superior a um irmão que insistia em manter-se neutro, apenas focado na sua própria quinta, num conflito que dizia respeito a todos.

A violência escala à medida que o livro avança e Slimani não se coíbe de manter esse retrato gráfico, com diversas descrições de assassinatos e violência, quer contra quer pelos colonos franceses, cuja arrogância e condescendência são traço colonial constante na obra.

Duplamente alvo de colonialismo são, no entanto, as mulheres marroquinas (e, de certa forma, também Mathilde): tanto o exercido pelos franceses como aquele que os homens exerciam sobre elas. Desde a mãe de Amine, Mouilala, que está constantemente confinada às quatro paredes da sua casa, subserviente primeiro ao marido e depois aos filhos, a Selma, irmã mais nova de Amine, cuja fome de liberdade e independência acaba gorada às mãos dos seus irmãos, quando a apanham num romance com um aviador francês. 

Há um claro paternalismo nesta sociedade marroquina dos anos 50, mas Mathilde existe neste livro não enquanto retrato da opressão das mulheres, mas da vida em Marrocos naquele período pré-independência. Em nenhum momento, aliás, é dado como certo que Mathilde teria uma vida melhor se tivesse ficado em França, em Mulheuse. Mesmo quando volta a França para ir ao funeral do pai, o que a faz sonhar com não ter que regressar a Marrocos não é tanto a vida em França ser necessariamente melhor, mas a promessa de recomeçar, de deixar para trás uma vida que não se revelara exactamente aquilo que Mathilde ambicionara. O que a faz regressar à terra que adoptou enquanto sua são, acima de tudo, os seus filhos, Aïcha e Selim, rebentos que Slimani compara aos frutos amargos do enxerto entre uma laranjeira e um limoeiro que Amine experimentara. 

Ora, sendo da sua própria família que fala Slimani, estará a autora a sugerir que, no seu caso e no da sua mãe, o enxerto não funcionara? Estará Slimani realmente a questionar-se se os frutos da união entre franceses e marroquinos valerão a pena? Seria talvez uma visão natural para um marroquino sem origens francesas, como argumento contra o colonialismo francês, ou para um francês xenófobo que argumente a superioridade francesa, mas, vindo precisamente do fruto dessa união, não me é claro o objectivo desta analogia na obra.

Num livro tão ambicioso, parece-me pouco achar que a autora recorre a esta analogia apenas para representar uma tensão existente na sociedade, até porque Slimani não tem medo de pôr o dedo na ferida, de ser desconfortável. No fundo, é esse o lugar da ficção: o da dúvida, da ambiguidade, da luta. É o lugar do questionamento, e não o da resposta. Não é por ser o país dela que não é também o país dos outros, e vice-versa. Até porque, afinal de contas, independentemente do que nos trouxe ao lugar onde ficamos, seremos sempre estrangeiros, nem que seja de nós próprios.

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