A tradição da tourada – anatomia de uma falácia

por Pedro Bragança,    19 Novembro, 2018
A tradição da tourada – anatomia de uma falácia
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A tourada regressa ao centro do debate e os argumentos dos aficionados, agora recuperados e reinterpretados por Manuel Alegre, são os do costume: a felicidade do touro; a nobreza do momento em que lhe são espetadas facas; a dignidade do seu sofrimento perante pessoas que rejubilam; o significado cultural da prática; o exercício da liberdade de espetar facas em animais…

Mas o derradeiro argumento é agora forjado por Sérgio Sousa Pinto, sempre hábil no uso das palavras e engenhoso na formação das ideias: não conceder apoios públicos à tourada é uma manifestação de “intolerância contemporânea” e uma forma de imposição do “sábio urbano educado pela internet” e da matriz cultural da “civilização” a todos os outros — leia-se, aos detentores dos valores tradicionais.

Por princípio e em abstrato, seria sensível à ideia. E, tanto quanto vi, muitos foram. Mas é preciso verificá-la.

Fará sentido a construção desta oposição, espacializada em dois universos culturais e modos de vida quase opostos? Haverá tal coisa como o território próprio dos aficcionados (o mundo rural) e o território próprio dos que são contra as tourada (o mundo urbano), como sugere o texto Sérgio Sousa Pinto?

1. Mais do que uma simplificação, esta construção teórica assemelha-se a uma caricatura. O antagonismo cultural “cidade vs. campo”, aqui apresentado como “civilização vs. sub-civilização” — à imagem dos frescos de Lorenzetti “A Alegoria do Bom e do Mau Governo” — está totalmente fora do prazo. A dicotomia apenas serve para alimentar ficções e não adere à realidade da infraestruturação do território, do acesso à informação, da disseminação da tecnologia, da cultura, do saber, etc. Foram os habitantes da Póvoa de Varzim, por exemplo, que, recentemente, numa das poucas praças de touros resistentes a norte do Douro, com as suas manifestações, forçaram o fim das touradas, decretado pelo município. O mesmo aconteceu noutros lugares. Aliás, uma grande parte do movimento anti-touradas está geograficamente associado aos lugares tauromáquicos, o que nos leva a concluir que é errado o argumento de que está a ser imposta uma matriz cultural externa e arrasadora para a morfologia culturais do lugares. O processo de transformação é essencialmente interno. E, acrescento, é mesmo assim que deve ser.

2. Na crítica à tutela da “civilização” sobre a “sub-civilização”, Sérgio Sousa Pinto é, ele próprio, tutelar, porque a condescendência é também uma forma de tutela. Aliás, no caso português é uma forma de tutela muito própria dos falsos-cosmopolitas: “Deixai-os espetar as faquinhas nos touros, tão engraçados e autênticos que eles são…” é um pensamento que assenta numa pretensa superioridade intelectual.

3. Mesmo que esse antagonismo cultural “cidade vs. campo” fosse real, é um mito que a tourada seja um produto da ruralidade ou do campo (ignoremos, por instantes, o simplismo de que sofre o emprego desses conceitos). A ruralidade é apenas o argumento que anima um cenário ficcionado e que ocorre, maioritariamente, nas cidades. A tourada é uma aproximação simulada à vida no campo, mas não é a vida no campo em si mesma. A estatística demonstra-o: a região onde se realizam mais touradas em Portugal é a Área Metropolitana de Lisboa (IGAC, 2017). Dentro da Área Metropolitana de Lisboa, é o município de Lisboa aquele que acolhe mais eventos (IGAC, 2017). Ou seja, a tourada é, essencialmente, um espectáculo das cidades e que as pessoas das cidades agora procuram defender através da inversão habilidosa da narrativa e dos sujeitos. Não, Sérgio Sousa Pinto e Manuel Alegre não estão a defender a liberdade dos outros; estão a defender o seu direito à diversão. Resta saber se o seu direito à diversão é um valor superior ou inferior ao direito dos animais de não serem sujeitos ao sofrimento escusado.

4. A tourada não é uma manifestação cultural; é uma forma de entretenimento e, simultaneamente, objeto de afirmação do marialvismo e do ultramontanismo, movimentos sociais e políticos que procuram em tudo, obsessivamente, projetar traços da identidade cultural: o touro “ibérico” (bravo); o cavalo “lusitano”; a lide a cavalo, as bandarilhas, a pega, o forcado e o reabajador como variante que distingue a originalidade da festa brava lusitana, única no mundo nos seus protocolos e nas suas personagens. Não discutindo a antiguidade da prática, a imagem idílica da tourada ainda hoje se alimenta do imaginário do Estado Novo.

5. Não é em Reguengos de Monsaraz. Não é em Viana do Alentejo. Não é em Cuba. Não é em Serpa. É no município de Albufeira que se realizam mais touradas em Portugal (IGAC, 2017). Todas as sextas-feiras, de Maio a Outubro. Ali, como em todo o Algarve, não há “tradição milenar continuada até aos dias de hoje” ou “raízes históricas profundas ativas”: a praça de touros, única em funcionamento na região, foi construída em 1982 por um investidor privado e alberga um centro comercial e apartamentos. Estranho? Não. Porque em Albufeira, como nos outros lugares tauromáquicos, designadamente no Alentejo, não é a população local que forma a maior parte do público do espectáculo. São os turistas veraneantes, estrangeiros e nacionais, que vêm das cidades com uma curiosidade mórbida pela bizarria e pelo grotesco, pelo supostamente-local, pelo supostamente-autêntico, pelo supostamente-genuíno. A tourada é um produto comercial.

6. Mesmo que fosse uma forma de ativação cultural e não um mero espectáculo de gáudio em torno do sofrimento desnecessário de um animal, a tourada continuaria a colidir com princípios universais que todos – os da “cidade” e os do “campo” – consolidámos e sedimentámos ao longo dos tempos. Foi à luz desses princípios que uma mulher acabou condenada em 2016, na última “Queima do Gato” realizada em Mourão (Vila Flor, Bragança). Esses princípios, os da defesa e da dignidade da vida animal, ainda recentemente validados por uma alteração do estatuto jurídico dos animais no Código Civil, são a verdadeira tradição.

7. Voltemos ao ponto de partida: não está em discussão a proibição das touradas. A discussão é apenas em torno da concessão, ou não, de apoios públicos (por via de benefícios fiscais) a um espectáculo essencialmente frequentado pela classe média-alta e que consiste, resumidamente, no sofrimento assistido de um animal.

O fanatismo de Manuel Alegre e Sousa Pinto perante uma discussão sobre fiscalidade e apoios públicos é sintomático. Alegre diz que “quem não percebe a corrida [de touros] também não percebe a poesia, não percebe a literatura”, e vai mais longe, ao defender que “é este tipo de intolerância [com as touradas] que cria os Bolsonaros.”

É preciso desmontar a farsa que está montada.
Afinal, elas sim é que criam Bolsonaros.

Texto escrito por Pedro Bragança e originalmente publicado aqui, tendo sido reproduzido com a devida autorização.

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