A última vez que vi os Ornatos Violeta: “o amor é isto”
Era difícil pedir mais aos Ornatos Violeta no seu regresso a Lisboa. Duas horas e meia e mais de 35 músicas numa noite difícil de narrar. E quando o ponto alto de um concerto é todo o concerto?
Os cinco Ornatos entram em palco como crianças eufóricas, com o poema do final da “Ouvi Dizer” como fundo. É com um esclarecedor suspiro de nervosismo que Manuel Cruz se dirige ao Coliseu, repleto: “Vamos a isto!” Dez anos passaram e muito mudou. Desde logo a popularidade estrondosa que a banda atingiu– graças a um programa televisivo e não só: a receção do Coliseu, que rebentava pelas costuras, foi um agradecimento à altura da homenagem que a banda prestou a todos os fãs.
Ao longo de trinta e cinco músicas, fizeram questão de tocar “Cão!” e “O Monstro Precisa de Amigos” quase na íntegra – com as músicas completamente fiéis ao álbum – e, lá mais para o final, quando o sentimento apertou mais, raridades dos primeiros passos da banda. Ninguém poderia exigir que o punk moda funk ainda fosse vivo, mas a forma como a banda o fez reencarnar foi digna de um concerto de uma vida.
Começam com quatro músicas sem pausas para discursos (provavelmente com medo de banalizar as palavras que iam dirigir ao público). “Para Nunca Mais Mentir”, “A Dama do Sinal”, “Tanque” e “Pára de Olhar para mim” (e a primeira tremidela do chão com os saltos) mostraram uma viagem ao passado com pouca turbulência, ou o grande esforço dos cinco velhos amigos para escaparem ilesos à saudade.
O primeiro a livrar-se da t-shirt foi mesmo o baterista Kinorm (Manel Cruz não a manteve durante muito mais tempo), quem mais cedo extravasou o que lhe ia na alma: soltava a adrenalina de braços no ar, emocionado. Mais tarde, todos se deixaram afogar na emoção, até mesmo o plácido Nuno Prata. Manuel Cruz parou de cantar a “Dia Mau”, com o Coliseu ao rubro, para levar as mãos à cabeça e medir ao certo o que se estava ali a viver.
Assola-nos uma sensação esquisita. Os Ornatos Violeta estavam mesmo ali, “vivos outra vez”, como se o tempo não tivesse passado, numa festa que muitos pensavam nunca vir a assistir. Porque desenterraram e deixaram à solta no Coliseu memórias e sentimentos que se pensavam esclarecidamente arrumadinhos, as lágrimas ficaram na dúvida se deviam escorrer; afinal não era suposto a adolescência voltar a vencer-nos. E cada música começava a dar um calafrio enorme na espinha. Só quem não conhecer minimamente os Ornatos pode ousar reduzir o seu regresso a uma oportunidade comercial. Foi “do fundo do coração” que Manuel Cruz agradeceu ao público. “Esta festa foram vocês que a fizeram!”
Encarar de novo o álbum “Cão!” seria o desafio mais complicado, porque a própria banda não se cansa de afirmar que algumas músicas deviam ficar quietinhas ao lado do acne. Mas não: “Punk Moda Funk”, “Um Crime à Minha Porta”, “Débil Mental” a “A Dama do Sinal” chegaram com toda a vivacidade e ironia que se pediam. Assisti, paralisado.
O concerto foi mais especial ainda para o João, que erguia um cartaz a pedir para tocar a comovente “Deixa Morrer”; depois da aprovação de Manuel Cruz e Peixe, sobe ao palco e toma a guitarra acústica, não sem antes dedicar aquele momento à namorada, que estava ali mesmo à sua frente. Cinco minutos inesquecíveis e de fazer inveja a um Coliseu! Antes, uma homenagem ao primeiro vocalista de sempre da banda, Ricardo Almeida, a quem a banda enviou um forte abraço, “Estejas onde estiveres”, e dedicou a inédita “Sacrificar” – acústica e penetrante. O brilho nos olhos não engana.
A primeira pausa vem depois das encantadoras “Ouvi Dizer” e “Capitão Romance”, que fizeram estremecer a sala lisboeta. O primeiro encore começa de forma explosiva, com “OMEM” e “Punk Moda Funk”. A partir daí, muitos inéditos que o público não tinha como conhecer, dos primórdios da banda, e os artistas a reviver em palco a sua forte amizade: abraçavam-se, atiravam cerveja uns aos outros e sorriam com a mesma ingenuidade do final dos anos 90, para lembrar que “guardar cá dentro amor” não lhes faz nada bem.
Para o segundo encore Manel Cruz vem sozinho, para cantar “Raquel” e “Marta” (e ser abafado pelo público), a segunda já com Elísio Donas nas teclas. Depois de “Chuva”, “Devagar” e “Como Afundar”, voltariam para mais um encore.
“Dias de Fé” foi a última. No alinhamento estava previsto um quarto regresso ao palco, para o “Fim da Canção”: o público já estava visivelmente cansado, porque não é qualquer corpo que aguenta uma rajada tão forte de emoções confusas e arrebatadoras em tão pouco tempo, e por isso não pediu mais concerto com o impacto que se precisava.
A saída do Coliseu de Lisboa deu uma agradável impressão de consciência tranquila. Sentir que já se viu um concerto dos Ornatos Violeta só por si já seria fantástico. Mas um alinhamento que deixou poucas obras de arte de fora e com uma entrega tão sincera por parte dos cinco elementos, num ambiente a roçar a perfeição, deixa uma certeza: são coisas…
Obrigado, Ornatos Violeta.
Artigo escrito por Pedro Pereira, em Outubro de 2012, para o Sapo On The Hop
Para comemorarem o 20.º aniversário da edição de “O Monstro Precisa de Amigos” em 2019, os Ornatos Violeta decidiram brindar o público, de norte a sul do país, com um curto regresso aos concertos, para a interpretação integral da sua obra seminal, em três grandes festivais: o primeiro, em Lisboa, no NOS Alive, a 11 de Julho; o segundo, em Gaia, no MEO Marés Vivas, a 20 de Julho; o terceiro e último, em Faro, no Festival F, a 6 de Setembro. Os bilhetes para os dois primeiros festivais já se encontram à venda nos locais habituais. Para o Festival F estarão disponíveis brevemente, em data a anunciar.