A vergonha tem de mudar de lado

“A vergonha tem de mudar de lado” trata-se de uma troca de correspondência pública entre as escritoras Cláudia Lucas Chéu e Patrícia Portela. Cartas que pretendem colocar questões sobre a actualidade e reflectir em conjunto com os leitores. Sempre às terças na Comunidade Cultura e Arte.
Patrícia, querida correspondente,
Por vezes, não sei se nós, enquanto mulheres — mães, cuidadoras e profissionais —, teremos ferramentas suficientes como testemunho para as nossas filhas, permitindo-lhes prosseguir nesta corrida de estafetas incessante com um mínimo de dignidade e segurança. Eu ando estafada. Não desisto, mas ando estafada. Tenho dificuldade em acompanhar um sem-número de alarvidades que desfilam diariamente perante os nossos olhos e ouvidos. Estava a tomar o pequeno-almoço com a minha filha em casa e vimos que há umas semanas, em Loures, um grupo de rapazes entre os 17 e os 19 anos iniciou contacto com uma rapariga de dezasseis anos via online. Através das redes sociais, ficaram «amigos» e acabaram por marcar um encontro presencial à tarde numa rua movimentada. O que a rapariga não sabia é que o plano já estava traçado. O grupo de rapazes ia levá-la para um local menos movimentado, violá-la, filmar e transmitir o vídeo em directo numa página online. A rapariga, depois de sobreviver, sabe-se lá como, à violência e humilhação do sucedido foi ao hospital. O caso apenas chegou à Judiciária através do hospital que prestou cuidados de saúde à vítima. Sabes o que aconteceu? Os rapazes foram chamados para interrogatório e libertados. Atenção que há um vídeo desta violação a que muitas pessoas assistiram. Tenho dificuldade em compreender. Estes rapazes cometeram um crime. Foram para casa. Como a rapariga. Igualdade de circunstâncias.
Que farão outras raparigas ao serem violadas? Pensarão se valerá a pena passar pela humilhação de ter de explicar e reviver tudo na esquadra? De serem notícia num jornal, na televisão ou na internet? Ou perante um sistema totalmente ineficaz, uma rapariga violentada preferirá remeter-se ao silêncio, evitando assim outras violências públicas e privadas? E outros rapazes que tenham a mesma ideia aberrante? De se juntarem em grupo para violarem uma menor? Serão dissuadidos quando virem que nada de grave lhes acontecerá? «Algo cheira a podre no reino da Dinamarca», escreveu Shakespeare na voz de Hamlet; eu diria «Algo cheira a podre no reino dos humanos». Mas cheira mesmo, e revolve as entranhas.
Voltando às nossas filhas, eu julgo que seria capaz de matar alguém que violentasse a minha filha. Não é hipotético, tenho noção de que trago em mim um monstro no que concerne à defesa da minha filha. Quantas mães e pais pensarão o mesmo? Não faço um elogio à justiça popular, nada disso. Refiro-me antes à impotência de pais e mães que ficam de mãos, pés, boca, cérebro e coração atados perante a injustiça dupla que é fazerem-lhes mal a um filho e verem este ser negligenciado, humilhado e até atacado por um sistema judicial que considera a violação um crime bastante irrelevante.
Escrevo-te num seminário em Évora. Durmo aqui algumas noites durante a semana. Por cima da cama há uma Nossa Senhora com Jesus menino ao colo. Penso como estes locais deviam ser espaços sagrados e, como sabemos, muitas barbaridades, nomeadamente sexuais, aconteceram e acontecem nestes contextos. É aberrante. O aproveitamento que fazem em nome da pureza da alma. Muitos destes espaços são mais imundos que pocilgas. Há algum sítio onde nos possamos sentir seguros se houver um humano por perto? Eu tenho 47 anos e cada vez me sinto mais insegura seja onde for. Tenho medo das pessoas, sobretudo dos homens. Todos os meus pesadelos são com pessoas. Os filmes de terror que mais temo não são paranormais, os que me aterrorizam trazem sempre um humano como protagonista. Há uma frase popular inglesa — «It’s “not all men”. But it’s always a man.» Nem todos os homens, mas sempre um homem. Estarei a ser ingénua ou sincera verbalizando aquilo que muitas mulheres pensam e não dizem. Eu tenho medo dos homens, sim, e tu?