A vergonha tem de mudar de lado

“A vergonha tem de mudar de lado” trata-se de uma troca de correspondência pública entre as escritoras Cláudia Lucas Chéu e Patrícia Portela. Cartas que pretendem colocar questões sobre a actualidade e reflectir em conjunto com os leitores. Sempre às terças na Comunidade Cultura e Arte.
Querida Chéu,
Tantas perguntas com respostas estranhamente óbvias. Procuravas tu mais notícias sobre este tema das creches com horários alargados e perguntavas-me tu se seria um acaso não encontrares nenhum testemunho de um pai. Eu sorri, e pensei: o melhor amigo do homem é o cão, mas o melhor amigo da mulher continua a ser o belo do electrodoméstico.
Escrevo-te esta carta enquanto arrumo a cozinha da minha casa, minuciosamente equipada pela minha avó há mais de 50 anos. A minha avó era uma mulher frugal, regrada e devota, que após a morte súbita do meu avó, se dedicou por inteiro a rezar, a tomar conta de nós (substituindo as tais creches de horário alargado) a fazer voluntariado e a receber visitas da sua terra (que incluíam a irmã Mercedes, uma freira que apesar das dores crónicas que tinha num corpo que só se mantinha de pé graças a múltiplos mecanismos ortopédicos que ostentava do pescoço aos pés, era o ser mais hilariante que alguma vez conheci, uma mulher que não se cansava de pregar partidas no tempo que não dedicava ao Senhor). Na casa da minha avó, hoje a minha, havia um altar no corredor perante o qual a minha avó se ajoelhava duas vezes ao dia para agradecer a sorte de estar viva (ou pedir a Deus que nos livrasse da tentação, a sua maior angústia), havia duas camas, uma poltrona onde se sentava o meu avô e que ela nunca usou, uma mesa, umas quantas cadeiras, armários encrustados na parede com meia dúzia de items de roupa, todos em tons de preto e… uma cozinha apetrechada até ao tecto com a tecnologia mais avançada para fazer iogurtes, bolos, sopas, sumos, souflés, tudo acessórios que ganhava colecionando pacientemente os selos que acumulava com as compras de supermercado. Resistente que sempre foi a tudo o que era novo e considerava desnecessário, nunca perdeu uma novidade culinária, do tupperware ao ferro elétrico. Mesmo quando já tinha dificuldade em andar e precisava de ajuda para sair de casa, manteve-se sempre independente na cozinha e nas lides da casa, recusando qualquer substituição. O que me faz pensar numa outra resposta para a tua pergunta sobre os testemunhos paternos nos artigos sobre a situação das creches.
Li há uns tempos uma estatística que mostrava que os convidados para programas televisivos de debate ou para dar opiniões sobre os mais variados temas em horário nobre no telejornal são em larga maioria, homens. Quando saiu essa estatística, um apresentador desculpou-se, afirmando que sempre tentara convidar tantas mulheres como homens para o seu programa, mas as mulheres tendem a responder negativamente ao convite, sobretudo se no horário nocturno e para além disso – e agora vem aquela frase clássica que denuncia a lógica que ainda hoje prevalece nas grelhas televisivas e na sociedade actual sobretudo na sua vertente pública – “não há tantas mulheres como homens para falar de certos temas”.
Na altura fiquei a pensar no facto de as mulheres recusarem com mais frequência o convite para falar em público do que os homens e não te parecerá que isso também tem a ver com a condição de mulher-cuidadora-que-só-conta-com-o-electrodoméstico-em-casa? Imagino que um convite para falar num noticiário (ou mesmo em vários programas) seja algo de última hora. Não achas que um pai tem mais facilidade em dizer em cima da hora que não vem jantar ou que não vai apanhar os miúdos porque o chamaram, assim de repente, para falar na televisão do que uma mãe? Não estou com isto a dizer que os pais nunca são os principais cuidadores numa família mas não é mais fácil, ou mais aceitável em geral, que um pai vire a rotina familiar do avesso por 15 minutos de fama, e que a mulher, perante as prioridades e o cansaço acumulado se incline mais para um não para evitar acrescentar mais uma chatice ao dia? E, voltando à notícia sobre as creches, que reúne testemunhos femininos e não masculinos, não será o mesmo princípio de prioridade familiar que faz com que a “mãe” sinta ser sua obrigação arranjar tempo para falar sobre a creche das crianças, assunto que considera inserido nas tarefas familiares e que um pai sinta ser mais nobre interromper a rotina diária para ir falar sobre um Trump ou um cessar fogo em Gaza, quando, na verdade, todos estes temas se reduzem a um comum. Que raio de vida andamos nós a levar? E não será o facto de não estarmos felizes com ela que nos leva a votar em presidentes que gerem países como se fossem empresas que devem dar lucro, ou a juntarmo-nos à guerrilha para combater as injustiças a que estamos condenadas.
Esta última lembra-me o filme que vi esta semana e que te recomendo vivamente: As filhas do sol, de Eva Husson. Um filme que relata o dia-a-dia de uma batalhão de mulheres que se organizaram e se juntarm aos guerrilheiros cursos após a invasão do DAESH ao Monte Sinjar, na fronteira com o Iraque, onde viviam, a 3 de agosto de 2015 e que em 24h obrigou 500 000 pessoas a fugirem enquanto matou as restantes (sobretudo homens) ou as raptou (sobretudo mulheres, para os servirem na cozinha e na cama) e rapazes jovens (para os instruir e usar como soldados e balas humanas).
Encontrei este filme por um acaso na filmin.pt e lembrei-me do artigo sobre este batalhão que tinha lido há uns anos no Guardian Weekly e de alguns pormenores sobre estas mulheres e de como os soldados-homens tinham pavor de ser mortos por estas mulheres porque morrer às mãos de uma mulher impediria o acesso ao paraíso.
Rio-me ao escrever isto. Morrer pelas mãos de uma mulher, esse ser fraco, ou seja, acabar de cabeça cortada numa bandeja servida por uma mulher é uma grande vergonha para um soldado que não tem pejo em participar no genocídio do povo Yezedi e de cometer atrocidades diariamente em nome de uma ideia de sociedade que não inclui metade da sua população.
A certa altura, no filme assistimos a este diálogo entre a correspondente de guerra e a líder do batalhão de mulheres:
– Nunca pensaste em ser soldado? Estás sempre na frente a correr riscos.
– Não tenho coragem. Acho que sou mais útil como testemunha, é esse o meu lugar. Não quero usar armas, não é a minha história. Mesmo que por vezes ache que é quase inútil contar estes horrores.
– Como podes dizer isso? As pessoas precisam de saber a verdade.
– Não sei… O impacto da verdade sobre o povo… O povo não quer saber a verdade. Está a um clique de distância e os tiranos continuam a chegar ao poder. As pessoas compram promessas, sonhos. Estão dispostas a tudo para não ver esta merda.
O que não quer dizer que não seja importante procurar e transmitir a verdade.
É importante transmitir a verdade, mas não é urgente. É urgente mudar o mundo mas não é nada confortável e dá imenso trabalho. Porque continua o ninho a ser uma palavra que assenta melhor ao género feminino ainda que gramaticalmente seja masculina?
Será porque, apesar de todas as constatações, a mulher sabe que o electrodoméstico continuar a ser o seu melhor amigo na cozinha, mas, ainda assim, prefere ter a companhia de um marido, ainda que inapto e machista, no sofá. Será o medo da solidão um calcanhar daqueles?