A vida, manifestada em “A Pior Pessoa do Mundo”, de Joachim Trier
Este artigo pode conter spoilers.
O momento presente pode ser angustiante. Para trás o que foi, e pela frente o que virá, e ambos infinitamente maiores que o agora — por tudo o que poderá ser diferente no futuro, e por tudo, nos momentos que sabemos terem sido determinantes num certo momento das nossas vidas, que se imagina feito de outra forma. Eis que nenhuma possibilidade se oferece ao presente, quando visto à luz destas duas dimensões que se lhe opõem.
Por que seria ela, Julie, “The Worst Person In The World“, ou em português “A Pior Pessoa do Mundo“, no novo filme de Joachim Trier, que estreou esta semana? Bela, na especial acepção do termo que se materializa incondicionalmente nos que são jovens, vive. Há um rumo académico que se altera, e depois se desmonta; há amores e paixões de alguns dias, por gente e não só. O filme, que é em larga parte dela, ocupa-nos ao longo de “doze capítulos, um prólogo e um epílogo”, que começa precisamente na definição de uma insatisfação — “ela pressentiu uma inquietação que tentava suprimir a narrar, afogada em interferências digitais”, que talvez ecoe em muitos de nós também — e a acompanha em cerca de quatro anos da sua vida. Quanto à resposta da pergunta inicial, Joachim Trier nunca a concretiza.
A sua direcção do filme segue essa cronologia em perpétuo presente, e à rigidez da estrutura de catorze segmentos contrapesa uma câmera fluida, de movimentos por vezes brincalhões, atenta ao que aprouver; a narração em off contribui para que nos sintamos em ficção, e não apenas a ver vidas, em registo reminiscente de inspirados objectos da nouvelle vague cinematográfica. Por vezes intromete-se o estado das coisas circa 2021 — com as redes sociais, as alterações climáticas, o #MeToo e a covid-19 — e funciona como pano de fundo à nossa existência, uma espécie de comentário aos tempos modernos, mas circunscritos à sua relevância: apenas circunstâncias que nos moldam, sem exercer uma categórica determinação.
Os problemas que apoquentam a vida de Julie são, em certa medida, geracionalmente transversais: vivemos cada vez mais, não obstante as pessimistas perspectivas ecológicas para os futuros de nós, e o mundo está a mudar, seja em direcção a uma igualdade utópica, ou à erosão de valores que nos acompanham há centenas de anos. Essas transformações ocorrem a uma escala tal que remete a nossa vivência, e a dimensão superior que lhe atribuimos, a um enternecedor absurdo; mas não teremos, ainda assim, direito à angústia da ambição que não se materializa em grandeza; uma ilusão, ou necessidade, de propósito? O perpétuo presente de Julie aponta-a a tudo, vê-mo-la transformar-se, metamorfosear-se, reinventar-se, confrontada com tudo o que a vida tem para oferecer: são momentos mágicos e intensos, como a intrusão em festa alheia de perfeitos desconhecidos, manifestando estar viva, ousar transpor o limite de uma identidade fixa, imutável.
The Worst Person in the World é um retrato simples e muito humano de Julie e de quem se atravessa na sua vida. Podemos pensar nas crises existenciais de Ingmar Bergman, ou na paciente amargura estóica de Ozu; lembrar grandes Bildungsroman, que modelam um certo período de uma vida, ou a enternecedora audácia dos grandes musicais de outrora, que propunham um estilo de vida conducente à pura felicidade. O filme poderá figurar algures nesta geometria, mas ele também existe nas nossas vidas; como quando, após uma longa madrugada insone, de reflexão (na qual até se jura sentir o tempo suspenso), o Sol se ergue e com ele a luz e os pássaros, e a vida acontece em nós e em nosso redor.