A voz de Lou-Andreas Salomé entre Nietzsche, Freud e Rilke

por Lucas Brandão,    13 Agosto, 2018
A voz de Lou-Andreas Salomé entre Nietzsche, Freud e Rilke
Lou-Andreas Salomé

Em condições anormais à data, Lou-Andreas Salomé sempre quis mais do que uma mera vida doméstica, ao serviço do seu potencial marido. Sempre se quis desligar do patriarcalismo vigente nos finais do século XIX e nos inícios do XX. Foi assim que se assumiu como independente, numa vida de constante descoberta e de conhecimento. A russa conheceu e marcou a vida de vários nomes de referência, como Friedrich Nietzsche, Sigmund Freud ou Rainer Maria Rilke. A filosofia percorreu o seu rol de interesses, mas fixou-se como psicanalista, função através da qual procurou sempre entender melhor o ser humano e, em consequência, o mundo que o rodeia.

Lou von Salomé nasceu em São Petersburgo a 12 de fevereiro de 1861, no então Império Russo, sendo a única filha de cinco de uma família cujas origens são franco-germânicas. Inconformada no seu espírito, querendo sempre saber mais, de forma a obter um grau de instrução, conheceu o padre holandês Hendrik Gillot quando tinha 17 anos e quis aprender teologia, filosofia, religião e literaturas francesa e alemã. Para dar seguimento às ambições da sua filha, a mãe acompanhou Salomé para Zurique, na Suíça, onde estudou teologia, levando-a, pouco tempo depois, para Roma. Lou tinha 21 anos e viria a conhecer o autor e médico Paul Rée, que, em pouco tempo, se deslumbrou com a jovem, propondo-lhe casar-se com ela. No entanto, a russa quis um outro tipo de relação, uma de irmandade e de companheirismo, à qual se podia juntar um outro homem, de forma a estabelecer uma espécie de comuna académica. Rée condescendeu ao seu desejo e sugeriu ninguém mais do que o filósofo Friedrich Nietzsche, seu amigo pessoal. Também este se apaixonou por Salomé, vendo as suas aspirações negadas pela estudante. No entanto, nada disto impediu aquilo que se seguiria como um périplo pela Europa Central, nomeadamente pela Suíça e por Itália, com o trio a fazer-se acompanhar, de quando em quando, com a mãe de Salomé. O sentimento que Nietzsche sentia pela russa não cessou, o que levou ao distanciamento dela e de Rée em relação ao filósofo enquanto estavam na Alemanha.

As tormentas mentais do alemão levaram-no ao seu célebre período de angústia e de descaraterização, em que procurou fazer a sua redenção em relação ao comportamento que teve com Salomé. O papel da irmã de Nietzsche, procurando afastá-lo do trio perante a presença de uma “mulher imoral”, para além da demais influência que teve na sua vida e postumamente, foi decisivo para que se efetivasse esse afastamento. Muito deste amor não-correspondido contribuiu para o enlouquecimento do pensador, que partiu mal o século XX dava os seus primeiros passos, logo em 1900. Por via desta experiência, Salomé viria a redigir um estudo sobre a personalidade e o pensamento de Nietzsche em “Friedrich Nietzsche in seinen Werken” (1894, “Friedrich Nietzsche nos seus Trabalhos”).

Entretanto, a vida de ambos seguiu em frente e Salomé conheceu Helene von Druskowitz, a segunda mulher a ser doutorada em filosofia em Zurique. Ainda ao lado de Paul Rée, viveram em Berlim até ao casamento dela com o professor Friedrich Carl Andreas, da Universidade de Göttingen, mesmo assumindo-o como uma ligação aberta a outras relações. Esse matrimónio seria prolongado até 1930, ano da morte do seu cônjuge, que tomou conhecimento das relações de Salomé com o político Georg Ledebour, o poeta Rainer Maria Rilke, e o psicanalista Sigmund Freud. Estes compromissos mais ou menos fugazes são apresentados na obra autobiográfica “Lebensrückblick” (“Revisão da Vida”), encontros esses não só carnais, mas também emocionais e, essencialmente, intelectuais; para além disso, relata as suas experiências independentes e autónomas, longe dos constrangimentos associados ao papel social da mulher. A correspondência com Freud revelou o carinho que sentia por Salomé, destacando a sua compreensão das pessoas, melhor do que a delas próprias. Já com Rilke, deu-lhe a descobrir o russo, para ler as narrativas de Tolstói e a poesia de Pushkin, para além de mecenas e de outras pessoas envolvidas no mundo da arte. 15 anos mais velho que Salomé, o poeta manteria uma relação íntima com a russa até à sua morte, em 1926.

Por entre o seu trabalho como psicanalista e as suas relações estimulantes e intuitivas, Salomé viu a sua saúde a fragilizá-la aos 74 anos, já nos anos 30 do século XX, impedindo-a de trabalhar. Com a partida do seu marido logo no início deste período, viu-se debilitada e só perante uma situação cancerígena, que já tinha abalado o seu cônjuge, acabando por partir a 5 de fevereiro de 1937, por via de um problema renal, na cidade alemã de Göttingen. Por ter origens judaicas, a sua biblioteca seria apreendida pela Gestapo, a polícia secreta nazi, embora o seu legado permanecesse e permaneça vivo pela criação de um centro de psicanálise e psicoterapia com o seu nome, na cidade onde faleceu.

Entre o seu trabalho, as suas viagens e as relações que teve, a psicanalista redigiu bastante, mesclando as suas vivências com as visões que tinha sobre o íntimo e o subconsciente do ser humano. O seu sentido lírico também se fez sentir na peça musical “Hino à Vida”, composta por Nietzsche, inspirada numa estrofe de um poema de Salomé, de seu nome “Lebensgebet” (“Oração à Vida”). No seu trabalho científico, abordou a sexualidade feminina de um ponto de vista psicanalítico, traçando o roteiro pelo qual a polaca Helene Deutsch viria a seguir no seu estudo. A dimensão psicológica seria, então, escrutinada em “Die Erotik” (1911), uma obra formal à qual se completaram os ensaios que ia escrevendo. Entretanto, entre os mais de dez romances de Salomé, abrangeu a literatura no seu repertório literário, com “Henrik Ibsens Frauengestalten” (1892, “As modas das mulheres em Henrik Ibsen”), analisando as personagens femininas das peças deste dramaturgo norueguês.

A poesia é algo entre o sonho e a sua interpretação.

“Correspondência entre Sigmund Freud e Lou-Andreas Salomé” (1972).

Tudo isto traz uma dimensão profissional a um vaguear muito peculiar e diferente para aquilo que era o encerrar do século XIX e o alvor do XX, em que a emancipação das mulheres ainda dava passos precoces. Salomé surgiu como um desses passos, afugentando os preconceitos associados ao que esta poderia ou não fazer, limitando-se a seguir a intenção, a ambição, o sonho. O próprio estudo de figuras masculinas às quais esteve ligada intimamente perspetivaram um olhar diferente, usualmente transmitido pela vertigem do homem em relação à mulher. Os papéis não se invertiam, mas equilibravam-se. O género surgia como um mero pretexto ao estabelecimento de regras e de restrições numa dada sociedade, às quais, implicitamente, a russa foi avessa.

Lou-Andreas Salomé continua por ser uma individualidade por se revelar e por se apresentar, mesmo tendo vivido com proximidade de Nietzsche, Rilke ou Freud. É mais a sua vivência junta e conjunta com alguns destes vultos que a fazem protagonista na transição de séculos entre o XIX e o XX. Do seu estudo psicológico e psicanalítico, traçou importantes reflexões sobre a condição feminina pelo tempo e pelo espaço, tanto na realidade como na ficção. Numa vida de aventuras e desventuras, o seu caráter independente e provocador fez-se sentir pelo decurso da sua vida, numa preocupação despreocupada em viver e ser.

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